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Especialistas em arquitetura e urbanismo fazem uma revisão dos 50 anos de Brasília

GIOVANNY GEROLLA

Colaboração para o UOL

17/04/2010 09h00

Idealizada para ser a capital da democracia brasileira, com apenas quatro anos de existência Brasília tornou-se sede de uma ditadura. Ao comemorar 50 anos a cidade vê sua administração às voltas com sérias acusações de esquemas de corrupção. Como resistiram a tudo isso o plano de Lucio Costa e os edifícios de Oscar Niemeyer?

Graças ao prestígio desses arquitetos, bastante bem, pelo menos no Plano Piloto. Fora dele e no entorno, onde se instalaram as cidades satélites para onde foram empurrados os candangos – os construtores da capital – a evolução ocorre como na maior parte do país: de forma desorganizada.

Brasília foi o grande balão de ensaio para aplicação dos pontos do programa para construção de cidades racionais e funcionais da Carta de Atenas, documento escrito por Le Corbusier como resultado do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM, em francês), em 1933 (embora publicada apenas em 1942). A setorização, ou seja, criação de áreas para moradia, comércio, recreação e trabalho é uma dos principais pontos da Carta de Atenas.

Tais princípios foram atacados por urbanistas, que consideram o sistema de setorização desumano e por demais rígido, e também condenam a exaltação do sistema viário como meio circulação – o privilégio do carro sobre o pedestre.

Leia a seguir, uma avaliação de Brasília, seu planejamento urbano e seu desenvolvimento nesses 50 anos, feito por um time de observadores escolhido por UOL Casa e Imóveis. 


Guilherme Wisnik - arquiteto e crítico de arquitetua

“É difícil achar alguém que defenda Brasília, ainda hoje, como um modelo válido de planejamento urbano. A cidade é historicamente datada e talvez tenha sido o mais importante e último grande exemplo de modernidade. Quando foi construída, havia o ufanismo pela modernização de um país periférico, num momento de realização das vanguardas. Ao ser inaugurada, fortes críticas ao urbanismo moderno começavam a aparecer. Em 1960, o modelo já era considerado anacrônico. Com o golpe militar em 1964, a capital da democracia tornou-se sede do regime autoritário – um paradoxo cruel contra as idéias de seus idealizadores.
No melhor sentido, Brasília é vista como um museu dessa modernidade e, de fato, a vida numa superquadra é ótima, se comparada com a qualidade de vida em outras regiões do país. Na Capital, quinhentos mil habitantes vivem em residenciais abertos, sem cercas elétricas, e crianças brincam nas áreas comuns – um modelo de vida que até nos parece milagroso. E a rigidez dos critérios que conduzem à cidade tombada é o que ainda mantém viva a utopia de um mundo melhor.
Contudo, ainda há os dois milhões de habitantes que vivem nas cidades satélites. O saldo é, portanto, negativo para o Plano, que foi permissivo o suficiente para que a pobreza - não planejada - se instalasse e se acumulasse em lugares segregados, de péssimas condições urbanísticas.
Há 50 anos, todos achavam que a cidade não cresceria para além de suas fronteiras. Hoje, inchada, Brasília espelha a grande contradição brasileira, entre a pobreza e a riqueza, lado a lado. E, como seu núcleo é tombado, tudo o que está em volta só poderia virar terreno selvagem de especulação imobiliária.” 

  • Leonardo Finotti, fotógrafo de arquitetura, autor de ensaios sobre Brasília

“Brasília parou na inauguração. A cidade, no entanto, por ser uma Capital Federal, teria tido condições de se abrir para diversos outros arquitetos, por concursos públicos. Essa flexibilidade geraria uma dinâmica essencial para que a sua arquitetura continuasse boa. O urbanismo, acredito, funciona bem, mas a arquitetura é horrível, ou por falta de cultura, ou por erros políticos. Lucio Costa ganhou um concurso; Niemeyer era amigo de JK. O que se desenhou em 1980 é de mesma autoria daquilo que foi desenhado na década de 1950.
Se o plano urbanístico funciona, também tem defeitos, pelo fato de não prever as mudanças naturais que a cidade sofreria. Uma cidade é um organismo vivo, e é preciso que ela se adapte, a cada instante, às novas necessidades.
Em Brasília, as deficiências que mais chamam a atenção do observador são seu contingente populacional e sua carência de meios de transporte. Hoje, o automóvel não precisa ser necessariamente o meio mais importante e, apesar de a cidade ter ciclovias, seu uso não é observado.
Se o planejamento urbano é pensado de forma dinâmica desde o conceito, ele estará sempre aberto a mudanças que deverão ser mantidas e, ao mesmo tempo, adaptadas a novas alterações que tempos futuros exigirão.”

  • Roberto Segre - professor do programa de pós-graduação em urbanismo da UFRJ

“O Eixo Monumental, o Congresso Nacional ou a Praça dos Três Poderes. Sem dúvida, essas são imagens que representam Brasília. Lucio Costa e Oscar Niemeyer conseguiram proeza única no século 20: criaram um ícone de cidade moderna, reconhecida, não somente no Brasil, mas em todo o mundo.
A arquitetura monumental, que representa o Estado brasileiro, obteve a mesma ressonância popular que o futebol, o carnaval e a Bossa Nova. Ícones históricos, no entanto, sempre ficaram em cidades tradicionais: São Pedro, em Roma; a Torre Eiffel, em Paris; o Empire State Building, em Nova York.
Os prédios simbólicos do Plano Piloto são a expressão da busca da utopia. Esta última, em qualquer caso que se analise, sempre destruída pela realidade: o Capitólio de Washington, identificação da democracia americana, foi negado pela política imperialista dos sucessivos governos dos Estados Unidos; o monumento de Tatlin à Terceira Internacional, imagem da vanguarda revolucionária russa, foi negado pelo stalinismo. E o prédio do MES (Ministério da Educação e Saúde), atual Palácio Capanema, símbolo da vanguarda cultural e arquitetônica brasileira, necessitou da ditadura Vargas para ser concretizado.
Ao mesmo tempo, a utopia social de Brasília, imaginada por Costa e Niemeyer, fracassou com a chegada da ditadura militar, em 1964, pouco depois de sua inauguração. Os pobres, construtores da Capital Federal, não conseguiram morar nas superquadras, expulsos para as bordas distantes do Plano Piloto.
Além de seu valor icônico, é preciso comemorar a função pioneira de promover a ocupação do território brasileiro, criando articulação entre o sul e o norte do país. Entretanto, as comemorações não podem ser apenas de exaltação do Plano. Ele representou a concretização de idéias urbanísticas do Movimento Moderno, de Le Corbusier e da Carta de Atenas, em espaço e tempo limitados. Ninguém poderia supor que esse esquema inicial ficaria congelado, eternamente.
Hoje a cidade expressa tão somente contradições políticas, econômicas, sociais e culturais existentes no país.
A ocupação da beira do lago; as mansões individuais de luxo; a especulação imobiliária nas áreas residenciais; e mesmo novos prédios inseridos por Oscar Niemeyer foram, muitas vezes, intervenções contrárias à proposta inicial de Costa. Seria ingênuo, também, acreditar que Brasília ficaria imune à pobreza, à violência e à corrupção que sempre existiu no Rio de Janeiro, em São Paulo ou em Belo Horizonte.
A comemorar resta ainda a vitalidade mantida por Brasília nesses 50 anos, além de sua capacidade de transformação - agora já como território urbanizado, podendo ser associada às idéias contemporâneas de Rem Koolhaas.
Brasília é o Núcleo Bandeirante, Taguatinga, Gama, Ceilândia, Cruzeiro, Sobradinho, Planaltina, Brazlândia, Samambaia, Vale do Amanhecer, com todas as suas contradições sociais e espaciais, injustiças, feiúra e corrupção. Em 2010, Brasília não é mais um símbolo abstrato, mas a representação real do Brasil.”

  • Alain de Bottom, filósofo e escritor suíço, autor de “Arquitetura da Felicidade”

“Quando o presidente Kubitschek revelou suas intenções de construir Brasília, ele anunciava que a nova capital seria a mais original e precisa expressão da inteligência de criação de um Brasil moderno. Pelo interior adentro, ela foi planejada para ser um modelo de eficiência burocrática - um ideal que o país, em esforços de expansão, só poderia reverenciar com certa insegurança.
Desde o início, a cidade não foi pensada para simbolizar uma realidade nacional existente, mas sim para fazer emergir dela mesma uma nova realidade. Era esperado que, com suas largas avenidas e seus edifícios ondulados de concreto e aço, Brasília pudesse ajudar a apagar o legado brasileiro do colonialismo e da dependência, assim como o caos e a miséria de suas cidades costeiras. Brasília seria a provedora da própria modernidade que profetizava. Ela criaria um país em sua própria imagem e semelhança.
O fato de Brasília ter acabado abrigando uma parcela de favelas, grama queimada, vias espaçosas e edifícios tombados com paredes fissuradas não nos deve dissuadir, porém. Esses lapsos simplesmente sublinham a necessidade de uma arquitetura idealizada como defesa contra tudo que é corrompido e inimaginável.
O homem precisa de prédios e cidades capazes de nos lembrar sobre como gostaríamos que o mundo fosse; muito mais do que cidades que nos lembrem sobre como o mundo normalmente é. Assim, Brasília ainda é uma promessa; uma esperança ousada de um futuro brilhante com o qual o Brasil ainda tenta se conciliar.
Não há nada de errado com essas esperanças. É só mais uma das coisas que podem ser construídas pela arquitetura - a fixação material de nossos sonhos, sem que eles nos escapem às mãos.” 

  • Frederico de Holanda, doutor em arquitetura pela Universidade de Londres

“O aniversário de Brasília é a possibilidade de avaliarmos retrospectivamente a mais importante experiência urbanística do século 20 - moderna, mas ao mesmo tempo heterodoxa, ao infringir um receituário. Lucio Costa não foi um arquiteto qualquer, e por isso Brasília também não é uma cidade moderna qualquer.
Costa incorporou características de urbanismos milenares, terraplenos e perspectivas barrocas, resgatando a monumentalidade urbana que o modernismo abominava. Ele foi um humanista, e seu projeto, como qualquer outro, tem qualidades fascinantes e problemas que são típicos do urbanismo daquela época.
Podemos dizer que o seu foi o menos problemático de todos os projetos apresentados na ocasião do concurso de Brasília, porque as demais propostas eram ortodoxamente modernas; logo, o uso no espaço, segundo a obra de Lucio Costa, era muito mais simplificado. Outras propostas eram mais descontínuas, com muitas rupturas, enquanto o trabalho de Costa, apesar das imensas dimensões, proporcionou continuidade à Capital.
Brasília emplacou então como símbolo da nacionalidade porque tem identidade muito forte. Funciona, mas dentro de limitações de proposta para aquela época, e bom exemplo são os transportes coletivos (naquela época todos achavam que o carro seria o futuro, e Costa acreditava nisso).
A segregação social é, sem dúvida, um dos problemas mais graves da cidade. Foram pensados apenas dois tipos de espaços para moradias - as superquadras e as casas individuais do lago, que se transformaram em mansões inacessíveis à grande maioria da população.
Acreditava-se que a terra pública poderia beneficiar uma política fundiária mais democrática, o que por sua vez também se demonstrou irreal, já que a terra nunca foi usada, em Brasília, para atender a interesses sociais. O próprio Estado, ao promover leilões para a venda de terrenos, acabou atuando como agente especulador.
A política é perversa, peculiarmente no Distrito Federal, onde o governo tinha quantidade imensa de terras e as usou como moeda de troca eleitoral, dando às famílias mais carentes terrenos gratuitos em zonas periféricas, num verdadeiro círculo vicioso clientelístico.”

  • Jorge Guilherme Francisconi - arquiteto e urbanista

“Brasília é um grande sucesso internacional quanto ao estabelecimento da ocupação e da interiorização do território brasileiro, ou como exemplo da capacidade criativa de urbanistas, arquitetos e artistas brasileiros. No entanto, vale lembrar que seu Plano Piloto não representa o pensamento moderno do urbanismo, mas o pensamento modernista europeu da primeira metade do século 20.
O Plano é um modelo vivo em escala real de princípios modernistas aplicados pelas mãos talentosas de Lucio Costa e, penso, funciona, apesar dos problemas que poderiam ser apontados, tanto a partir da administração pública como a partir da comunidade. Para projetar uma cidade, não basta fazer o projeto. É necessário construí-la - e Brasília não está concluída. Além disso, um bom plano não significa nada se não houver sua boa gestão. E este é o maior problema do Plano Piloto.
Entretanto, qualquer espaço urbano refletirá diferenças sociais e culturais de sua população local. O sonho sócio-político das décadas de 1950 e 1960 não foi alcançado, nem em Brasília, nem em outras cidades de países comunistas que visitei nos anos de 1960. A dura realidade é que a cidade traduz a cultura e a economia de onde se insere. Ela é produzida pela sociedade, e se nossa sociedade é a da alta disparidade e a da má distribuição de renda, o produto serão cidades injustas, com redutos para os mais ricos.
O inchamento de Brasília decorreu da grande migração urbano-rural, especialmente alta entre os anos de 1950 e 1980. Observe-se que apenas o Plano Piloto é área tombada. Nele habitam menos de 300 mil habitantes, ainda que a proposta de Lucio Costa apontasse para 500 mil. Outros 2,5 milhões vivem na metrópole, em áreas não-tombadas.
A especulação imobiliária e o surgimento de condomínios irregulares (para uso das classes média e alta) são produto de quatro fatores básicos: falta de planejamento urbano que previsse áreas de expansão residencial; mercado com grande demanda por habitações para famílias de renda crescente, em busca de melhor qualidade de vida; setor público incompetente na fiscalização de irregularidades urbanas e rurais; além de personalidades inescrupulosas e sempre atentas às oportunidades de ganhar dinheiro fácil e ilegalmente.
A conjunção destes quatro fatores cria uma rede de corrupção, fortalecida pela passividade de entes públicos e privados, e que conta com a conivência geral da comunidade - grande parte dela beneficiada pela pirataria e pelo comportamento criminoso de especuladores imobiliários.”

  • Jeferson Tavares - arquiteto, urbanista e mestre pela USP - São Carlos

“Brasília não pode ser considerada um modelo moderno. Sua contribuição como solução urbanística vai além do estereótipo da Carta de Atenas. Brasília é uma criação do século 20 e também se liga a esses preceitos, mas não se restringe a eles. E como criação, trouxe benefícios e desvantagens.
Algumas soluções ali criadas foram bem sucedidas e até hoje servem de referência, como o uso dos pilotis sob os edifícios residenciais. Outras exigiram adaptações, como as ruas comerciais - inicialmente voltadas às áreas verdes -, que tiveram suas fachadas invertidas para as ruas de serviços, por uma vocação dos próprios moradores.
Houve propostas ainda que, em tempos atuais, sequer seriam consideradas, como o desmatamento do cerrado para a construção de uma cidade. Esses são aprendizados que resultam da experiência e da reflexão que Brasília possibilitou.
A setorização proposta pelo projeto de Lucio Costa, pode-se dizer, é funcional, e não por estratificação. O problema da segregação social ocorre por uma acomodação mal sucedida, espelhando a realidade brasileira; algo como a quebra de uma utopia. A cidade ideal debate-se com a cidade real.
Assim, o Plano Piloto tornou-se um bairro nobre do Distrito Federal. E essa é a clara expressão de que o projeto de uma cidade, por si só, não transforma sua sociedade. O próprio fato de não ter havido um destino definido para os milhares de candangos (os construtores de Brasília) colaborou para esse desvio. Sem dúvida, a cicatriz da estratificação social espelha-se na Capital.
Mas o crescimento da cidade não deve ser considerado maléfico, nem mesmo numa cidade tombada. O espaço urbano é um elemento vivo que se transforma a cada dia, a cada hora. E seu tombamento existe para poder resguardar seus valores sem, contudo, congelá-lo. De nada adianta uma bela obra de arte presa em um cofre. Ela deve ser acessível, mas exige cuidados.
Por outro lado, o adensamento é um processo natural do modelo urbano, e deve ser previsto e controlado a partir de dois principais elementos: a boa técnica e a vontade política.
Apesar de alguns esforços isolados, ao longo da história de Brasília esses elementos não foram predominantes. Foram substituídos por interesses próprios e pelo descaso para com a coletividade. Como consequência, temos o conflito entre as esferas pública e privada, precedido pela tradição patrimonialista que desfigura os objetivos políticos.
Formalmente, Brasília tem se transformado numa cidade corrompida, cujas áreas livres foram ocupadas e a população pobre, empurrada para suas margens.”