Topo

"Eu mantive o corpo da minha filha em casa por três semanas"

Niamh durante os anos de tratamento - Gilli Davidson
Niamh durante os anos de tratamento Imagem: Gilli Davidson

25/06/2017 18h53

Quando sua filha de nove anos Niamh morreu, sua mãe, Gilli Davidson, sabia como ela queria se despedir - e a diretora da funerária local tornou isso possível.

Niamh Storey Davidson recebeu um diagnóstico de tumor de Wilms - um câncer raro de rim que afeta crianças - aos seis anos.

Ela enfrentou o tratamento por quase três anos, mas continuou piorando. Então a família recebeu a notícia que o estado dela era irreversível. "Pensar que ela não estaria aqui era algo insuportável", lembra Gilli.

"Ela morreu em casa às 13h30, ao meu lado e do pai dela." Os outros filhos de Gilli - incluindo o irmão gêmeo de Niamh, Zach --estavam na escola ou na faculdade.

Mas em meio àquela tempestade de tristeza e chateação, Gilli tinha certeza de uma coisa: ela queria doar os olhos de Niamh, os únicos órgãos da garota que não tinham sido afetados pela doença.

A doação de órgãos é algo muito importante para a família de Gilli --quando era bebê, um dos irmãos de Niamh fez um transplante de coração após contrair uma grave infecção no peito.

A mãe precisava agir rápido. Por volta das 17h ela estava em contato com a Arka Original Funerals --uma empresa da cidade de Brighton, na Inglaterra, que integra um movimento no Reino Unido para retirar o caráter industrial e humanizar as questões que envolvem a morte.

Quando a diretora da firma Cara Mair chegou com sua colega Sarah Clarke-Kent para pegar o corpo de Niamh, não havia sacos funerários pretos e impessoais para colocá-lo.

Ela foi levada em uma maca com travesseiro, envolta em um lençol de algodão e uma fina cobertura de veludo com folhas.

"Para famílias é muito difícil testemunhar o corpo de um ente querido sendo retirado de casa", afirma Cara.

"É importante ter algo bonito pela embalar os corpos. A pessoa pode ter morrido, mas ainda é sua armadura, seu receptáculo." 

Niamh foi levada rapidamente às instalações da Arka, onde os olhos foram removidos por um técnico médico naquela mesma noite.

"Sarah ficou com Niamh durante o procedimento", conta a mãe, Gilli. "Foi um privilégio, porque sabia assim que o processo seria respeitoso. O homem que a operou disse que os olhos de Niamh eram lindos e estavam em ótima condição, então certamente seriam doados. Fiquei muito feliz de ouvir aquilo."

Uma despedida diferente

No dia seguinte, Niamh foi levada de volta para casa. Manter um corpo em casa antes do funeral é raro no Reino Unido, mas não é ilegal.

Gilli Davidson com o caixão da filha Niamh na sala de casa - Gilli Davidson - Gilli Davidson
Gilli Davidson com o caixão da filha Niamh na sala de casa
Imagem: Gilli Davidson

A questão mais importante é a temperatura. Algumas funerárias oferecem unidades de ar condicionado no verão para manter os corpos na temperatura adequada, e cobertores elétricos frios também podem ser usados.

No caso de Niamh, a temperatura não foi um problema. Era novembro, mês frio no hemisfério Norte, então ela foi colocada em um quarto em casa com as janelas abertas.

"Ela ficou lá, deitada no sofá com seus cobertores e almofadas", lembra Gilli.

"Eu não conseguiria tê-la deixado em outro lugar. Apenas não parecia a coisa certa. Ela tinha acabado de fazer nove anos - ainda parecia que era parte de mim."

Niamh permaneceria em casa por quase três semanas, com os olhos fechados.

"Nós tentamos desacelerar as coisas para os familiares, para dar tempo de digerir a notícia de uma morte. Não temos um jeito padrão de fazer as coisas", afirma Cara.

Nos dias em que Niamh ficou em casa, a mãe passou muito tempo com ela.

"Pude dar banho nela e colocar suas roupas favoritas. A principal coisa para mim era tornar sua morte real. Se ela tivesse simplesmente desaparecido da casa, depois colocada em um caixão para nunca mais ser vista, eu ainda a estaria procurando", diz a mãe.

Gilli confiou em seus instintos ao conduzir a despedida da filha porque ela já havia sofrido a perda de dois filhos. Seu primeiro, Liam, morreu pouco após o nascimento, em 1990.

"Eu lembro de pedir para vê-lo antes do funeral, mas o capelão que cuidava do velório não permitiu. Então por anos depois costumava pensar que acreditaria se alguém batesse à porta e dissesse que a morte dele havia sido um terrível engano. Era como se eu não acreditasse que ele estava morto."

Ela nunca esqueceu o fato de que não conseguiu ver o filho pela última vez. "Aquilo me fez pensar - por que? Por que estão querendo me enrolar? Você fica em um estado tão frágil e estranho após a morte de uma criança."

No Reino Unido, não é comum que familiares e amigos vejam o corpo no caixão logo antes do enterro ou da cremação. Mas Cara Mair diz que isso é algo importante para alguns clientes.

"Quando o caixão é fechado, eles sabem que foram os últimos a ver aquela pessoa, então podem descansar com a certeza de que os corpos não foram manuseados de forma desrespeitosa", afirma.

"Claro que isso não é igual para todos - isso pode deixar algumas pessoas desconfortáveis. Mas a chance de escolher precisa existir", completa.

Lições do luto

Em 1998, Gilli perdeu um segundo filho, Robbie, ainda recém-nascido. Ela tinha aprendido algumas lições de seu primeiro processo de luto, mas ainda assim o serviço funerário pareceu muito equivocado.

"Foi muito longo para um pequeno bebê. E quem falou citou muitas coisas religiosas, que não tinham nada a ver comigo", conta.

A mãe se recorda de uma conversa que teve com Niamh antes da morte da filha.

"Estávamos indo ao parque com o irmão dela, e ela disse que queria ser enterrada. Ela não gostava da ideia de fogo, e estava muito certa daquilo."

Mas a mãe odiava a ideia de um cemitério --macabro e escuro e tão diferente de sua pequena e tímida filha.

A família decidiu fazer o enterro em uma área de bosque. Gilli não queria colocar a filha em um caixão, e a empresa disse que ela poderia ser enterrada apenas envolta em uma manta. Mas o pai mudou
de ideia no último minuto e o corpo acabou sendo colocado em um caixão.

"Ela não mudou muito no período que passou em casa desde a morte", lembra Sarah Clarke-Kent, da empresa funerária. "Ela parecia tão pequena e em paz."

Niamh amava cães. No dia do enterro, sua rua ficou cheia de vizinhos, amigos, crianças e seus cachorros.

"Foi emocionante ver como a família se envolveu e se manteve no controle do funeral de Niamh. Foi um privilégio ajudá-los", afirma Cara Mair.

Ela dirigiu lentamente o carro com o caixão pela rua, seguida por uma procissão de pessoas a pé. Balões foram soltados, então todos entraram em seus carros e foram até o local do enterro.

"Realmente sentimos que foi a coisa certa. O funeral é apenas o começo da despedida, mas é um começo muito importante ---é o início do caminho para o próximo capítulo da vida, sem aquela pessoa. E se não lidamos com a morte de uma maneira boa, o luto fica preso, e pode afetar sua vida e de suas crianças". afirma Gilli.

A família também teve uma reação muito positiva à decisão de doar os olhos de Niamh.

"Temos essa ideia cultural de que os olhos são a janela da alma, então é comum não autorizar a retirada. Muitas pessoas nos escreveram dizendo ter mudado de ideia após ouvir a história de Niamh."

E quando Gilli soube que as córneas da filha tinham sido transplantadas, dando visão a um adolescente e a um jovem homem, ela ficou muito feliz.

"Significa que um pedacinho de Niamh viveu ---esse é o legado dela."