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Ivan Lessa fala sobre cheiros, olores e aromas

Ivan Lessa<BR><br/> Colunista da BBC Brasil

26/09/2008 12h38

Eu sempre tento encaixar logo no início de qualquer coisa que escreva uma canção. Por exemplo, hoje eu vou de "é aquele cheiro de saudade que me traz você? etc".

Essa me lembra o Miltinho e o Lúcio Alves. Me dei com os dois. Nunca cheguei perto o suficiente para saber a que cheiravam. Se é que cheiravam. Sei que gosto mais da gravação de "Cheiro de Saudade", com o Lúcio. Coisas.

Me lembro, sem googlar, que seus autores são Luiz Antônio e o Djalma Ferreira.

O que me leva à buate Drink, principalmente no ano de 1960. Mas isso é divagar (quase parando?), pura digressão, que ambas indisciplinas são meu forte.

Tudo menos ir direto ao assunto.

Drink. O porteiro Waldir. Manquitolava. Vendia na moita cigarro americano. Mesmo para quem não estivesse na buate.

O cheiro das pessoas. Lembro como se fosse hoje. Nunca de amigo ou conhecido. Eles que me perdoem. Mantivemos, todos, uma saudável distância em todas as horas.

Lembro sempre das senhoras ou senhoritas. Na verdade, eu me lembro, ou passo de fininho pelo aroma da saudade, de um perfume, colônia ou lavanda.

Um sabonete de importadora? Chi lo Sá? Para ser sincero, uma jovem - muito jovem - cheirava a talco. E talco fino. Nunca descobri qual. Também dei minhas cafungadas em muito Trio Maravilhoso Regina. O jingle era de Antonio Maria. Não, não me lembro da redolência de "Fats" Maria, como o chamava Mariozinho de Oliveira.

Matar saudades é a expressão. Tolice. São imperecíveis, imortais. Colônias? Lavandas? Perfumes? Sou incapaz de distinguir um Chanel Número 5 de um Leite de Rosas.

Até hoje procuro, só para dar uma voltinha (triste, fossenta) a um passado cheio de 9 horas e muita 3 da madrugada, até hoje procuro, dizia, dar uma trescalada num tal de "Jolie Madame". Perfume é abstração. A mente não o recompõe. Faz beicinho. É feito gosto. Perfume é um gesto de nossos sentidos. Em geral, triste. De quem diz adeus, adeus, adeus para sempre.

"Jolie Madame", informa-me o Google, é do Pierre Balmain. A informática mente. O perfumista pode ter pago para um grupo de químicos surgir com o fórmula e um bando de marqueteiros para batizar o resultado. "Jolie Madame" é uma senhora totalmente diversa. Nada teve a ver com Balmain. Muito comigo.

Pausa para medir estação
Carlos Drummond de Andrade (em bronze, sem óculos, sentado num banco de praia na Avenida Atlântica) - "Oh, abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória."

Volta à plataforma
Harvey Prince é um perfumista britânico. Está nos noticiários especializados. Os noticiários perfumeiros. Ou perfumosos. E ainda perfumados. Ele jura que inventou, e agora espalham, um novo perfume a que deu o nome de "Ageless Fantasy", "Fantasia Eterna". Trata-se, diz sua publicidade, de um "elixir de uma fragrância que desafia o olor natural revelado pelo processo de envelhecimento".

Elixir de uma fragrância. Pois é. A "Fantasia Eterna" é para mulheres. Homem, os velhinhos feito nós, continuarão a cheirar a velhice, fim de vida, proximidade de Alzheimer Número 3 e "la belle dame sans merci". Taí. Esse seria outro nome bacaninha para uma arômata comercial. Deprimente, mas preciso. Algo assim entre nosso sabonete "Lifebuoy" e aquele terrível "4711" alemão.

À "Fantasia Eterna".
Parece que cheira a diversas frutas. Flor de cerejeira, almíscar e baunilha. Haverá açaí e cupuaçu na fórmula? Quiçá jaca? Saio de perto, mando-me. Dêem-me, ao invés, hoje e sempre, aquele "cheiro de velhice". Feito a redolência de velhos livros, só pode ser bom.

Além do mais, cheiro desagradável não é privilégio (privilégio?) da idade. Muita gente boa, com 18 anos, pode exalar os eflúvios da mocidade. Uma mocidade malcheirosa, de bode não castrado, conforme quer o bom e oloroso "Houaiss".

Bodum. Cecê, ou CC, simplesmente. Esse último eflúvio veio com a publicidade de um sabonete. Acho que o próprio "Lifebuoy", que já mencionei. Era uma tradução que pegou, pelo menos até há uns tempos atrás, de BO, "body odour", ou "cheiro de corpo". Sim, aí é chato.

Desodorante neles, nelas, em quem for. Que resolve, ao que parece. Mas nem "Fantasia Eterna" nem "Belle Dame".
Tudo somado, encerro luxuriando-me, banhando-me, no bálsamo de um lugar-comum, esse meu pinho, meu companheiro inseparável: esse papo não está me cheirando bem.