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Maternidade lésbica: os métodos, escolhas, custos e burocracia para ser mãe

Maternidade Lésbica - Ana Matsusaki/ Revista AzMina
Maternidade Lésbica
Imagem: Ana Matsusaki/ Revista AzMina

Tamy Rodrigues

da Revista AzMina

14/05/2018 12h38

Era um domingo de piquenique em família no parque. Lara, então com quase 1 ano, engatinhou em direção ao cachorro da família ao lado. “Que olhos lindos ela tem! É sua filha?”, perguntou o dono do animal para Luciane, que assentiu com a cabeça. “Não que os seus olhos castanhos não sejam bonitos, mas que sorte ela ter herdado os genes do pai, né?”. Já se preparando para a reação do desconhecido, Luciane respirou fundo e respondeu: “São os genes da outra mãe dela, que também tem olhos claros”, apontando para Thayla, que observava a cena sentada a poucos metros dali. Um rápido levantar de sobrancelhas e um franzir de testa, acompanhados daquela coçadinha básica na cabeça, indicaram uma pane no sistema daquele homem. “Ué, mas quem é a mãe dela afinal?”

Mãe

  • Mulher que tem ou teve filho ou filhos.
  • Animal fêmea que tem filho ou filhos.
  • Borra do vinho que ainda não foi posto em limpo.
  • Mulher carinhosa.
  • Protetora.
  • Origem, causa, fonte.
  • Ser fantástico, espécie de sereia de água doce, também chamado uiara e iara.
  • Pessoa que chora facilmente.             

(Dicionário Aurélio Buarque de Hollanda)

A palavra “mãe” tem praticamente a mesma raiz linguística em todos os idiomas do mundo e é pronunciada nos cinco continentes, com pequenas variações, há pelo menos 15 mil anos, segundo Mark Pagel, professor de Biologia Evolutiva da Universidade de Reading, na Inglaterra. Em sua publicação Mother Tongue Hypothesis  (Hipótese da Língua Mãe, em tradução livre), o pesquisador defende que a palavra “mãe” faz parte de um conjunto de 23 vocábulos que sobreviveram à Era do Gelo, quando o planeta era um só continente e possivelmente a humanidade falava um só idioma.

Mas o que faz da palavra “mãe” tão universal e ancestral? Teria essa junção de sons alguma relação direta com a natureza humana?

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Uma das explicações, batizada de Teoria da Vinculação, parte do movimento aprendido pelos bebês para sugar o leite do seio e dos barulhos que eles começam a emitir quando estão distantes do peito. A tal sílaba “ma” é utilizada para que a criança sinalize a vontade de se alimentar, replicando uma, duas, quantas vezes forem necessárias até ter a fome saciada.

Mas será que essa palavra, mais antiga que as pirâmides do Egito e tão perene quanto à própria humanidade, não foi inventada para ser usada em dupla? Será que mãe precisa ser só uma mesmo?

Apesar de ter um útero em plena condição para gerar um bebê, a natureza não me trouxe a possibilidade de fazer isso em conjunto com a mulher que eu amo, com quem escolhi dividir as belezas e os percalços da vida.

Como o nosso, há muitos outros casos de mulheres não conformadas com as limitações da “mãe natureza”. No Brasil, há pelo menos 32 mil famílias homoafetivas formadas por duas mães (53,8% do total), segundo dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Após decidirem pela maternidade, mulheres lésbicas podem passar dias, meses, em busca de informações sobre métodos de reprodução assistida, adoção, acordo com um doador amigo, coparentalidade e tantas outras saídas e combinações. Dá para fazer pelo SUS? Quanto custa todo o procedimento em uma clínica privada? Pode mesmo dar certo se eu fizer em casa? Como fica o registro da criança? Qual o caminho para adotar?

O objetivo desta reportagem é detalhar os métodos e caminhos possíveis e mais utilizados para uma concepção que não vem no pacote da mãe natureza. 

Nossa escolha

Maternidade lésbica 2 - Ana Matsusaki/ Revista AzMina - Ana Matsusaki/ Revista AzMina
Imagem: Ana Matsusaki/ Revista AzMina

Era uma sexta-feira chuvosa. Thayla Rodrigues tratava de ajeitar seu sutiã respingado de leite para conversar comigo enquanto a pequena Lara se debatia em seu colo, lutando contra o sono.

“Às vezes é dureza, viu? Eu sempre achei que dormir fosse algo natural, que a gente nasce sabendo. Mas ela ainda não aprendeu e acho que a Lu e eu já até desaprendemos.”

Luciane Prada é sua companheira. Se casaram em agosto de 2016 no terreiro de umbanda onde as duas trabalham, quando Lara ainda estava na barriga de Thayla. Ela sempre quis ser mãe e, ainda durante o namoro, soube que Lu não tinha vontade de engravidar, apesar de já ter pensado em adoção.

Foi então que Thayla, aconselhada por uma amiga cujo pai é médico especialista em reprodução humana, propôs que elas marcassem uma consulta. “A gente foi lá só pra entender como funcionavam os métodos e se algum serviria para a gente. Quando soubemos que não precisávamos ter quase 50 mil reais, como eu imaginava, já saí da clínica pra fazer os exames”, conta, apanhando um brinquedo do chão.

Seus 26 anos e os excelentes resultados das funções hormonais e condições anatômicas foram determinantes para que o método indicado fosse a inseminação intrauterina (conhecida pela sigla IIU) e, no caso Thayla, com baixa dosagem hormonal. Foram 12 dias de injeções de hormônio folículo estimulante (FSH) para produzir um ou dois folículos a mais, além do que é naturalmente produzido em cada ciclo.

“Controlando com o ultrassom endovaginal, em torno de 9 a 11 dias os folículos estão maduros. Então, aplica-se uma dose de HCG (hormônio gonadotrófico coriônico) para ‘deflagrar’ a ovulação no intervalo de 24 a 36 horas. Depois disso, são injetados os espermatozóides previamente selecionados, diretamente na cavidade uterina”, explica Mario Peçanha, especialista em reprodução assistida e membro da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana. “Daí em diante, contamos com o encontro e fertilização de pelo menos um dos óvulos produzidos.”

Luciane, Lara e Thayla, desfrutando da semana de férias em família no litoral de São Paulo  - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Luciane, Lara e Thayla, desfrutando da semana de férias em família no litoral de São Paulo
Imagem: Arquivo Pessoal

Após 14 dias da inseminação, o exame de gravidez trouxe a grande notícia: Thayla não estava grávida! “A sensação foi como se eu tivesse perdido um filho! Eu tinha vários sintomas de gravidez, como gosto de ferro nos alimentos e seios inchados. Acho que minha expectativa me fez engravidar psicologicamente.”, desabafa, mudando a pequena ao outro peito.

Mas elas não desistiram. Logo em seguida, após o intervalo de um ciclo, reiniciaram o tratamento, desta vez, com a dosagem completa de hormônios. “E, de novo, depois daqueles 14 dias que pareceram eternos e com as unhas todas roídas, fiz o exame. Deu positivo! Foi a maior felicidade das nossas vidas.”

A gravidez de Thayla entrou na estatística que aponta como bem-sucedidas 35% das inseminações intrauterinas em mulheres com menos de 35 anos. Após essa idade, a porcentagem diminui devido ao comprometimento da reserva ovariana, ou seja, do número de células reprodutoras com as quais a mulher já nasce e que não são repostas ao longo da vida.

Por volta dos 50 anos, essas células se encontram em esgotamento. Porém, como mostra a pesquisa Estatísticas do Registro Civil 2015, do IBGE, vem crescendo significativamente o número de mães de primeira viagem com idades entre 30 e 39 anos: de cerca de 20%, em 2005, para os 30%, em 2015. Um dos fatores é o avanço das técnicas de reprodução humana, entre elas, a Fertilização In Vitro (FIV).

ABC da reprodução assistida

A FIV é uma técnica de alta complexidade, em que a mulher é estimulada a produzir óvulos que serão aspirados e fecundados pelos espermatozóides, dando origem aos embriões. Somente depois, esses embriões são transferidos para o útero. Ou seja, a fecundação ocorre fora do organismo.

“É um método indicado não apenas a mulheres acima dos 35 anos, como também para as que fizeram laqueadura ou tiveram endometriose, síndrome dos ovários policísticos, falência ovariana ou algum comprometimento anatômico causado por sequelas de operações pélvicas”, esclarece Mario Peçanha.

Para mulheres que optam pela FIV, com um embrião já formado, o desafio deixa de ser o sucesso na fecundação e passa a ser apenas a manutenção daquela célula embrionária no útero. Por isso, a porcentagem de sucesso desse método é consideravelmente maior.

De acordo com Mario Cavagna, diretor do Centro de Reprodução Humana do Hospital Pérola Byington, mulheres mais jovens têm maior taxa de sucesso com a FIV. “As chances podem superar os 60%, enquanto para mulheres acima de 38-40 anos as taxas caem para cerca de 10-15%, chegando a zero após os 44 anos. Para essas mulheres, a indicação é a recepção de óvulos de mulheres mais jovens”, detalha.

Sônia* entrou para as estatísticas das chances nulas. Com 42 anos, conheceu Raquel* e, de cara, soube que queria seguir olhando para aquele par de grandes olhos negros e curiosos, dia após dia. Após dois anos vivendo juntas, decidiram que era hora de pendurar fraldas junto às calcinhas no varal. Os exames de Sônia comprovavam as estatísticas. Raquel, então com 33 anos, tinha perfeitas condições físicas para engravidar, mas era Sônia quem sonhava em ver crescer o barrigão.

A solução foi a chamada Recepção dos Óvulos da Parceira, ou Ropa. Raquel foi submetida ao tratamento hormonal para a obtenção e aspiração dos óvulos. Os embriões obtidos por FIV foram, então, transferidos para o útero de Sônia e trouxeram o pequeno Vitor para rechear a casa de mais amor.

O preparo do útero que recebe o embrião é simples, conforme esclarece Rui Ferriani, diretor da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana e da Comissão de Fertilidade Assistida da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). “É feito com estrogênio e progesterona, que deixam o útero receptivo ao embrião. E não há restrições de tipos sanguíneos ou cuidados específicos com uma possível rejeição.”

Um dos motivos do sucesso do procedimento e da consequente gravidez de Sônia foi a boa quantidade de óvulos disponíveis no corpo de Raquel para a fecundação, a tal reserva ovariana. Se ela tivesse oito anos a mais, por exemplo, ou se não tivesse tido sucesso com a FIV, talvez teria sido necessário apelar para um outro tipo de fertilização, a injeção intracitoplasmática de espermatozóides. Diferentemente da FIV convencional, em que os óvulos aspirados são colocados em um meio de cultura junto com os espermatozóides e a seleção natural faz o seu trabalho, na injeção, apenas um espermatozóide é injetado dentro de um óvulo.

Infelizmente nem todos os casais têm a “sorte” dos que ilustraram esta reportagem até aqui. A grande alegria trazida por aquele “positivo” pode também se transformar em uma enorme tristeza para mulheres que, após engravidarem com algum método de reprodução assistida, sofrem um aborto.

Um caminho possível para aquelas que desejam seguir na busca de explicações para a perda gestacional é o diagnóstico genético pré-implantacional. Uma análise genética feita nos embriões (antes da sua implantação no útero) permite a constatação de eventuais alterações cromossômicas capazes de impedir a fixação no útero. Com essa técnica, especialistas têm a condição de selecionar apenas embriões livres dessas possíveis alterações, aumentando, assim, as chances de sucesso na gravidez. “Sugerimos esse procedimento apenas em casos realmente necessários, como quando há um histórico de abortamentos. É um procedimento de alta complexidade e custo”, ressalva Peçanha.

Os doadores

Em qualquer método de concepção, além de determinação, algum dinheiro e condições físicas adequadas, lésbicas casadas ou solteiras precisam contar com um ingrediente sem o qual essa receita não fica completa: o sêmen. O origem do sêmen nos casos de inseminação ou fertilização pode ser bem polêmica. No Brasil, existem hoje dois grandes bancos fornecedores a diversas clínicas e hospitais (privados e públicos), sendo um americano e outro nacional. Segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (A), a procura de mulheres brasileiras por bancos estrangeiros vem crescendo exponencialmente, mais de 2.500%, de 2011 a 2016.

Uma das prováveis explicações para esse fenômeno diz respeito à maior possibilidade de escolha das características do doador (e por um valor não muito acima dos praticados em território nacional). Há bancos que informam hobbies, habilidades técnicas, signo do zodíaco e, até mesmo, disponibilizam uma foto do homem quando criança. De acordo com uma determinação do Conselho Federal de Medicina e da Anvisa, em qualquer processo de reprodução assistida, o doador deve ser totalmente anônimo e não ter nenhum tipo de contato com a criança gerada do procedimento, assim como as mães também não terão acesso ao cadastro do doador. Além disso, no Brasil, a venda de esperma é proibida por lei.

Mas não é incomum que mães lésbicas conheçam ou tenham contato com doadores. Jéssica Oliveira é a prova viva. Lésbica, com 22 anos e com uma filha de 3 – resultado de uma noite de tentativa de “cura” para sua orientação sexual – ela decidiu com sua companheira que era hora de atender ao pedido de Mariah por um irmão.

“Uma amiga falou para a gente que existia um método parecido com o que faziam nas clínicas e que não precisávamos ter todo aquele dinheiro. Foi pesquisando nas redes sociais que descobrimos o mundo da inseminação caseira e resolvemos tentar”, conta. Enquanto buscava possíveis doadores, Jéssica acompanhava seu período fértil. “A escolha do doador foi meio complicada porque eu não queria o contato dele com a criança. Então, escolhi um que já tinha vários filhos, pensando que, assim, ele não ia querer o nosso”, lembra.

O doador fazia parte de um grupo de “tentantes” e doadores no Facebook, com o objetivo de possibilitar inseminações caseiras. Já são 4 mil pessoas no grupo. Lá, mulheres compartilham desde dicas de como ter mais chances de sucesso com o método da seringa a modelos de contratos para doadores abrirem mão da paternidade.

Já os homens apresentam seus atributos físicos, postam fotos e se colocam à disposição para viajar a outras cidades e estados para fazer doações. As chamadas “tentantes” também fazem anúncios com suas exigências para um possível doador, como a localidade e exames de sorologia atualizados.

Talvez pela grande ansiedade, Jéssica não menstruou naquele mês. “Não sei o que aconteceu com o meu ciclo, mas, como a minha companheira ia logo entrar no período fértil, a gente readaptou os planos, combinou tudo com o doador e decidimos injetar o sêmen nela.” Na data combinada, ele ejaculou em um recipiente esterilizado e, rapidamente Jéssica, com ajuda de uma seringa, injetou o sêmen em sua companheira. “Ela ficou 20 minutos com as pernas para cima e, a partir de então, ficamos na torcida para ter funcionado”.

Murilo, gerado logo na primeira tentativa, foi a 15ª criança nascida com “ajuda” do sêmen desse doador, que já teria colaborado para a gestação de 32 crianças.

Apesar de não haver qualquer restrição legal proibindo o procedimento doméstico, segundo especialistas ouvidos pela reportagem d’AzMina, ele é contraindicado e oferece riscos. O material pode não estar adequadamente esterilizado, o que pode abrir espaço para infecções, já que a região da vagina é propícia à proliferação bacteriana – sem falar no risco de perfurações causadas pela utilização de instrumentos de forma inadequada. Além disso, existe uma baixa probabilidade de sucesso com a aplicação de um sêmen que pode, naquele momento, estar composto apenas por espermatozóides quase mortos após o contato que tiveram com o ar – fato que pode justificar as inúmeras vezes que algumas mulheres relatam ter repetido o procedimento até obterem, finalmente, o seu positivo.

Carlos* também é um participante ativo no grupo e afirma já ter auxiliado vários casais de mulheres. “Faço as doações porque não acho justo que casais de meninas não possam ter filhos por não terem condições de arcar com o procedimento em clínica. Sempre penso se isso deveria ser um fator limitante para alguém ser pai ou mãe. Eu venho de uma família pobre e, se ter esse dinheiro fosse condicionante para a maternidade, eu nem estaria aqui.”, conta. Ele afirma nunca manter contato com os casais após a doação e que, se a tentante prefere um doador que acompanhe ativamente a criança, ele indica a coparentalidade, pois talvez as expectativas sejam melhor atendidas nessa modalidade familiar.

Nem só de gestação vive a maternidade lésbica

Adoção - Ana Matsusaki/ Revista AzMina - Ana Matsusaki/ Revista AzMina
Imagem: Ana Matsusaki/ Revista AzMina

Clara* e Fernanda* estão juntas há 11 anos. Há quatro, logo depois de se casarem no civil, começaram a se preparar para a maternidade. Mudaram-se para um lugar mais tranquilo, no litoral de São Paulo, cuidaram da carreira e investiram em psicoterapia e autocuidado. “Lidar com a ideia de maternidade é lidar com as expectativas e frustrações. Tratar essas questões é bem importante para limpar o campo e não cair na armadilha da romantização e das projeções”, defende Clara.

Justamente nesse caminho de autoconhecimento, autocuidado e partilha, o casal ficou ainda mais unido, e a vontade e a certeza de que queriam ser mães ficaram cada vez mais fortes. A partir de então, assim como o fazem muitas outras mulheres, começaram as quase infinitas pesquisas.

A adoção sempre foi a primeira opção para elas – que até chegaram a pesquisar sobre fertilização, mas não deram sequência ao projeto, pois não queriam incluir um terceiro, anônimo ou conhecido, em um processo de gestação. “A adoção ainda é considerada um tabu e movimenta medo nas pessoas. Mesmo no meio lésbico, as pessoas falam com mais interesse sobre fertilização do que sobre adoção. No Facebook, tem um grupo chamado Maternidade Lésbica onde, em geral, os posts falam de inseminação, caseira ou artificial. É como se a construção da maternidade fosse mais legítima por essa via, mas não é”, diz Clara.

Cientes de que a grande maioria dos processos de adoção demanda paciência e determinação, ela e Fernanda deram início à jornada. Encontraram a lista de documentos necessários para dar a entrada no processo no site do Tribunal de Justiça – documentos pessoais, fotos da residência e declaração de imposto de renda. Após algum tempo da entrega do “dossiê”, foram convocadas para um curso preparatório obrigatório, em que a equipe explica como o processo de adoção funciona. Os próximos passos foram a entrevista com uma psicóloga e uma assistente social e a visita domiciliar.

Os relatórios foram anexados ao processo, juntamente ao parecer. “O problema é que essa etapa burocrática, que envolve a habilitação, acabou sendo mais longa do que imaginávamos. É bem sofrido ver o processo parado. Existe um desinvestimento do Estado com o Judiciário, são poucos funcionários e milhares de microprocedimentos.”, reclama Clara.

A partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) interpretou e reconheceu a união estável homoafetiva, já não há desculpas para que processos de adoção homoafetiva sejam excluídos do ordenamento jurídico brasileiro, destaca a presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Homofobia da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Adriana Galvão. “Possíveis casos de preconceito e discriminação por parte de assistentes sociais e psicólogos devem ser relatados de imediato”, orienta.

No fim do ano passado, Clara e Fernanda estavam habilitadas e, em fevereiro deste ano, seus nomes foram inseridos no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). O perfil do casal ficou disponível para os fóruns dos estados brasileiros selecionados por Clara. Ou seja, somente ali elas entraram na conhecida “fila da adoção” que, na verdade, vai funcionar conforme o perfil solicitado para a criança. No processo de habilitação, deve-se preencher uma ficha com dezenas de características sobre a criança que se deseja adotar, tais como gênero, idade e cor da pele. Também é necessário informar se deseja apenas uma ou mais crianças e/ou adolescentes.

Há, também, alguns itens mais específicos para serem selecionados ou não, como crianças ou adolescentes com doenças tratáveis ou severas, com algum nível de transtorno mental, com deficiências ou que foram vítimas de violência sexual, de incesto, estupro ou com genitores dependentes químicos. “Essa é a parte mais angustiante, pois não estamos mais falando de uma criança desconhecida, mas do futuro filho ou filha. É terrível pensar que esse ser que chegará pode ter passado por tantas dificuldades, mas é essa a realidade de milhares de crianças no Brasil.”, reconhece Clara.

Os critérios no preenchimento da ficha são determinantes para fazer andar a fila. Quanto mais rígido o perfil procurado, mais demorado é o processo, pois as exigências não condizem com as características da maioria das crianças abrigadas, sobretudo quanto à idade. O procedimento padrão é apenas aguardar, não sendo indicado visitar abrigos em busca da “criança perfeita”, dado que é o serviço que procura (via CNA e rede local) a melhor família para determinada criança. Até a conclusão da reportagem, Clara e Fernanda aguardavam.

Um caminho para quem deseja buscar ativamente é recorrer aos projetos focados no estímulo da adoção de crianças acima dos 7 anos e adolescentes, chamado “Busca Ativa”. Neles, as pessoas já habilitadas podem ter acesso a alguns dados da criança ou adolescente e, se estiver dentro do perfil, podem comunicar ao fórum o interesse. São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco, por exemplo, fazem a divulgação das crianças disponíveis para que todas as pessoas que estão habilitadas possam visualizá-las.

Se der certo, o primeiro contato será com o serviço técnico, que dará as informações sobre o processo da criança/adolescente e, se o interesse permanecer, tem início a aproximação, passo por passo. Se o primeiro encontro funcionar bem para os dois lados, é dada aos adotantes uma guarda provisória de um ano. Depois disso, é feita uma avaliação em que o juiz decide sobre a adoção definitiva. Se concedida, se torna irrevogável

“A adoção não é caridade. É construção de família, um ato de amor e, principalmente, de responsabilidade que requer consciência e certeza. Além da grande mudança na estrutura familiar, há direitos e deveres no aspecto social e jurídico. Sempre aconselhei as postulantes a seguir em frente com a vontade, conscienteS de doar suas vidas a um bem maior com base no amor e no respeito às diferenças”, comenta a advogada Adriana Galvão.

Faça um filho comigo

Coparentalidade - Ana Matsusaki/ Revista AzMina - Ana Matsusaki/ Revista AzMina
Imagem: Ana Matsusaki/ Revista AzMina

Vanessa, Pedro*, Laura* e Fernando*: quatro pessoas e três relações. Vanessa foi casada durante 10 anos e, diferentemente de sua companheira, quase desde o início do relacionamento cultivou uma grande vontade de ser mãe. Buscar uma clínica de reprodução assistida nunca foi uma opção. “Além de eu não ter muita grana, independentemente da minha homossexualidade, me agradava imaginar meu bebê tendo também uma figura de pai”, comenta. Em dado momento, conversando com seu amigo Pedro, que queria muito ser pai, pensou em propor a ele que fizessem o filho juntos, por inseminação caseira, ideia totalmente desaprovada pela companheira de Vanessa. Mas a vontade pela maternidade era mesmo grande – tanto que, logo após o término de seu relacionamento, Vanessa retomou a ideia com Pedro e, juntos, decidiram arriscar.

Pedro, casado com Fernando, acompanhou todo processo do companheiro quando este, no ano anterior, também decidiu dividir a parentalidade com a amiga Laura, por meio da inseminação caseira. Vanessa e Pedro tinham, então, uma fonte direta para munirem-se de todas as dicas e realizarem o procedimento – exames que deveriam fazer, posições na hora e depois da aplicação, entre outras -, além do auxílio de uma amiga pediatra para eventuais dúvidas técnicas. “Quando Pedro e eu fizemos a primeira tentativa, foi só pra saber como seria. A gente jamais imaginou que daria certo assim de cara”, conta Vanessa, sorrindo.

Há quase um ano, a criação da pequena Yara vem mostrando possível mais essa maneira a que lésbicas podem recorrer para ser mães: a coparentalidade. O uso desse é relativamente recente: a primeira referência apareceu há menos de 30 anos na literatura. Alguns autores, inclusive, chegam a considerar que o conceito de coparentalidade poderia ser aplicado a qualquer situação na qual dois adultos compartilham a parentalidade em relação a uma criança.

Um exemplo disso seria mãe e avó que dividem funções parentais entre si. A psicóloga Lucineia Marques chama atenção ao fato de que o próprio conceito de parentalidade – que, na psicanálise, é entendido como algo que independe da ligação biológica – pode ser construído ou não. “Por exemplo, uma mulher pode gestar um bebê, mas isso não quer dizer, necessariamente, que ela queira ou possa desenvolver uma relação de parentalidade com aquela criança. Ser mãe será uma opção”, explica.

Isso ainda é um tabu quando se trata das mulheres por conta da cultura machista, mas, se pensarmos nos homens, a ideia da parentalidade como construção fica muito mais nítida: o fato de o homem participar da concepção de um bebê não quer dizer que ele se tornará pai.

Dessa forma, assim como a parentalidade, a coparentalidade é também uma construção simbólica e, por isso, nela cabem muitos arranjos quando duas ou mais pessoas assumem as responsabilidades nos cuidados e na criação de uma criança. “A novidade mesmo é que estamos vendo essas configurações familiares acontecendo de forma consciente e assumida pelas pessoas LGBTs por consequência dos avanços dos direitos conquistados, como o processo de fertilização e a legalização da maternidade e paternidade conjuntas no caso de casais de gays e de lésbicas”, ressalta Marques.

A jornalista Taline Schneider nunca entendeu o porquê de precisar se casar para ter um filho. Há quatro anos e prestes a separar-se de seu ex-companheiro, iniciou a montagem desse quebra-cabeça ao digitar no Google “quero ter filho sem casar”. Ao descobrir a existência da coparentalidade, criou uma página no Facebook sobre o tema e, posteriormente, o site “Pais Amigos”, com diversas informações sobre coparentalidade. Uma das seções da página se chama “Faça um filho comigo”, uma espécie de “Tinder da concepção”, como Taline define, na qual cerca de 1,4 mil pessoas se encontram e dão matches para possíveis parceiros de parentalidade. A ideia da jornalista é transformar a seção em um aplicativo de celular.

Para Taline, a coparentalidade é “uma forma legítima de planejar com responsabilidade a concepção e criação de uma criança, seja ela biológica ou adotiva, em uma parceria baseada na amizade e no respeito, sem um envolvimento romântico ou sexual.” Essa seria, segundo ela, uma das melhores representações dos preceitos de uma família, pois tudo que gira em torno dessa modalidade só pode ser fruto de muito respeito, diálogo, transparência, afeto, cuidado e zelo.

No grupo, a maioria das lésbicas solteiras que querem engravidar e buscam um parceiro para a coparentalidade requerem que o procedimento utilizado seja a inseminação caseira – e não apenas por questões financeiras. Quando há também um homem no processo, muitas clínicas automaticamente consideram-no o marido e podem exigir que ela apresente um documento da união civil com o futuro pai. “Já conheci várias lésbicas que, para realizar a inseminação em uma clínica, se dispuseram a registrar uma união estável com o futuro pai só para burlar o sistema”, lamenta Taline.

Quando dois mais um são quatro

Lígia e Roberta alimentando a pequena Nina - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Lígia e Roberta alimentando a pequena Nina
Imagem: Arquivo Pessoal

“Nosso caso é um pouquinho diferente dos métodos tradicionais usados por muitas lésbicas ”, confessa a professora Lígia Ferreira, logo no início de sua entrevista à reportagem. Casada com Roberta Teixeira no civil, já há algum tempo vinha considerando a ideia de ser mãe, mas era a companheira quem mais queria engravidar. “Na verdade, nosso plano pra este ano era largarmos nossos trabalhos e sairmos viajando antes de pensar concretamente nisso”, conta. Mas a vida decidiu primeiro. Lígia já saía esporadicamente há alguns anos com um rapaz de sua cidade e seguiu se encontrando com ele após conhecer a atual companheira, com quem mantém um relacionamento aberto desde o início. No começo do ano passado, os três resolveram experimentar uma saída juntos pela primeira vez.

“Eu nem estava no meu período fértil e já fazia mais de 6 anos que eu saía com ele. O fato de eu ter engravidado na primeira vez em que a Rô esteve junto foi algo bem significativo pra nós duas”, diz Lígia. A professora relata ter sentido algum estranhamento em seu meio social após tornar pública a gravidez por duas possíveis razões: por terem uma relação aberta e por aquela barriga ser resultado de uma transa com um homem. “As pessoas sempre esperam que uma lésbica grávida é sinônimo de inseminação”, opina.

Após a gravidez e o nascimento de Nina, Lígia seguiu se encontrando com o pai da bebê. Ele conhece a pequena e sempre manda mensagens para saber dela, apesar de ter escolhido não assumir o papel de pai, oferecendo apenas seu auxílio financeiro, oferta que o casal ainda avalia se aceita ou não. Elas respeitam a escolha do rapaz, assumindo toda a responsabilidade e estando abertas caso um dia ela queira conhecê-lo. “É uma história meio delicada, mas nós pretendemos dizer sempre a verdade pra ela”, esclarece Lígia. Roberta registrou Nina graças à aprovação do Provimento da Maternidade Socioafetiva – detalhes aqui – e desde a gravidez é super ativa na criação do seu vínculo de mãe.

As batalhas burocráticas

Uma vez entendido o funcionamento de cada um dos métodos realizados nos centros de reprodução humana, como escolher a clínica ou hospital para realizar o procedimento?

De acordo com o último SisEmbio, relatório publicado em 2017 pela Anvisa, o Brasil tem 160 serviços de reprodução assistida cadastrados no Sistema Nacional de Produção de Embriões, sendo São Paulo o estado com maior número de serviços (43), seguido por Minas Gerais (19), Paraná (14) e Rio de Janeiro (12).

Em alguns estados, há serviços públicos que oferecem a inseminação/fertilização de forma gratuita. A maioria desses centros se localiza em São Paulo, mas, se contarmos o Brasil inteiro, existem menos de dez, sendo que, na maioria deles, o tratamento não é completamente gratuito, já que as medicações, que podem variar de R$ 3.000 a R$ 8.000, devem ser custeadas pelas pacientes. “Há muita dificuldade de realizar os procedimentos no sistema público de saúde, pois eles não constam na tabela SUS”, relata Rui Ferriani, chefe do setor de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.

Outra possível dificuldade para lésbicas que buscam o SUS é a simples impossibilidade de realização do procedimento sem um homem. O Hospital Pérola Byington, por exemplo, apesar de oferecer, de forma totalmente gratuita, todos os procedimentos de reprodução assistida, não possui banco de sêmen. “Se recebêssemos o apoio do Ministério da Saúde, poderíamos ampliar o número de casais atendidos e criar o banco de sêmen, o que possibilitaria o atendimento de casais de mulheres” ressalta Ferriani.

As mulheres que desejarem tentar realizar o procedimento pelo SUS devem procurar os postos de saúde de sua região, uma vez que os agendamentos para consulta no setor de reprodução humana são feitos pelas unidades básicas, pela Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde.

A falta de investimento público no setor provoca filas enormes e leva, todos os anos, milhares de mulheres lésbicas a buscarem centros privados de reprodução assistida. Os custos de cada procedimento podem variar muito de acordo com a clínica, a localização e o método utilizado.

A inseminação intrauterina – por ser o método mais simples, que exige a utilização de poucos medicamentos para estimular a produção de um ou dois óvulos (além da produção mensal natural) e a realização de exames básicos como ultrassonografias, sorologia e exames de sangue – costuma ser a mais barata, custando entre R$ 4 e 8 mil cada tentativa (incluindo o valor pago ao banco de sêmen).

A fertilização in vitro exige da mulher o uso de mais drogas, pois se estimula que ela produza em um ciclo o que ela produziria em um ano: de oito a 12 óvulos. O laboratório, então, faz a seleção dos que possuem capacidade de fertilização (sete ou oito embriões em mulheres com até 35 anos e três ou quatro em mulheres com idade próxima aos 40.) O custo total pode estar entre R$ 15 e 20 mil cada tentativa. O custo para casais de mulheres que optam pela ROPA (recepção de óvulos da parceira) é semelhante.

A saga do registro

Suanny e Juliana celebrando a vitória do nascimento de Luã, ao fundo, em seus primeiros minutos de vida - Kuara/ AzMina - Kuara/ AzMina
Suanny e Juliana celebrando a vitória do nascimento de Luã, ao fundo, em seus primeiros minutos de vida
Imagem: Kuara/ AzMina

“Luã veio ao mundo causando fissuras nos sistemas médico e jurídico: inseminação caseira, parto domiciliar e registro via setor jurídico do Cartório Civil. Assim começa a história deste pequeno grande menino, que chega abalando a nossa engessada sociedade, resistente a novas formações familiares.” Assim começa o texto da professora baiana Juliana Ortegosa, publicado no Facebook após o nascimento de seu primeiro filho com a companheira Suany Lima.

Luã nasceu no dia 18 de novembro de 2017. Se tivesse nascido quatro dias antes, as mamães provavelmente teriam tido mais uma batalha a enfrentar: o registro da dupla maternidade. Antes que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criasse regras sobre a maternidade socioafetiva, para que um casal de mulheres pudesse registrar uma criança, era necessária uma declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida.

O CNJ estabeleceu que o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva poderá ser feito diretamente em um cartório, sem precisar recorrer a uma decisão judicial. Mas, no caso do nascimento de filhos de casais de mulheres, não é possível realizar ao mesmo tempo o registro da criança no nome de uma mãe biológica e outra socioafetiva, caso não haja uma declaração do diretor responsável pela clínica onde foi realizado o procedimento de reprodução assistida.

Dessa forma, para Juliana e Suany registrarem o pequeno Luã, a certidão teve que ser feita, primeiramente, com o nome da mãe biológica para que, alguns dias depois, Suany pudesse incluir seu nome como maternidade socioafetiva. “Fui diversas vezes ao cartório levando e trazendo papéis até conseguir regularizar a certidão”, ressalta. O processo levou um mês e talvez teria levado ainda mais tempo caso ela estivesse trabalhando na época.

Em casos de crianças concebidas por inseminação caseira, a advogada Adriana Galvão recomenda que mulheres ou casais que não desejam participação do doador na vida da criança façam uma declaração de doação do sêmen por escritura pública – termo de consentimento por instrumento público ou particular com firma reconhecida. Isso evita que, futuramente, o doador venha a pleitear direitos sobre a criança ou que a criança venha a pleitear direitos sobre o doador, como alimentos e direitos sucessórios.

Com licença?

Ao contrário de Juliana que, por haver parido, teve direito a estar em casa com Luã nos seus primeiros 120 dias, Suany, que também amamentava, por não ter passado pela experiência do parto, teria direito apenas aos cinco dias de uma licença paternidade, caso necessitasse. “A legislação é bem sexista e reforça os papéis de gênero dentro dos casais, sejam homo ou heterossexuais”, relata a advogada especialista em direito do trabalho e previdenciário Victoria Catalano.

Ao contrário do que ocorre em alguns países europeus, no Brasil, ainda não existe um modelo de licença compartilhada para os cuidados iniciais da criança nascida ou adotada. Assim sendo, mesmo em caso de adoção, somente uma das mães poderá pleitear o benefício previdenciário. Porém, de acordo com a advogada Paula Boschesi, que cursa uma especialização em direito e processo do trabalho, já houve casos julgados em que, sendo as duas mães contribuintes (e empregadas na modalidade CLT), ambas puderam escolher quem poderia usufruir da licença maternidade. “São raríssimas as decisões no sentido de que ambas poderiam, ao mesmo tempo, usufruir dessa licença. Além disso, a autorização não é ‘automática’, depende muito de uma análise de cada caso e do RH das empresas, que, muitas vezes, não está preparado para essas situações”, ressalta.

Três mitos da maternidade lésbica

Lidar com a configuração de modelos familiares como o de Juliana e Suany não é uma dificuldade apenas de RHs de empresas. “Toda criança precisa de uma figura masculina e uma feminina!”, “Essa criança vai ter apenas a referência homossexual, logo, vai ser gay ou lésbica”, “O preconceito que essa criança vai sofrer pode trazer sérios problemas psicológicos” são exemplos de frases clássicas que podem ser ouvidas por uma lésbica quando decide ter filho. É como se, de repente, todo o entorno se transformasse em pura psicologia especializada em parentalidade ou em distúrbios infantis.
A reportagem conversou com a psicóloga Lucinéia Marques sobre alguns desses mitos que rondam a vida de crianças filhas de duas mães. Dentre eles, elencamos aqui três:

1. A criança sentirá falta de um pai

“Sobre isso, apenas a própria criança poderá dizer. É sobre como cada pessoa percebe e vê o mundo, e isso incluirá as faltas. Uma pessoa, por exemplo, que não teve vó, construirá seu mundo sem essa figura, poderá ouvir relatos de pessoas que tem vó e idealizar essa figura, lamentando por não ter tido, ou, não sentirá falta alguma, já que em sua construção de mundo essa figura não existe. Não há uma resposta universal, já que o sentimento de falta é da ordem do individual e constituinte do ser humano”, defende.

Uma questão ainda mais estereotipada é buscar qual das duas deveria fazer “o papel de pai”, geralmente atribuindo a função à mais identificada com o gênero masculino. “São duas mães, duas pessoas dispostas a encarar essa tarefa do cuidar. Não é preciso ser o que não é, é preciso incorporar a potência do que se é, sobretudo diante de um mundo ainda tão homofóbico”, opina Marques.

2. Mães lésbicas, filhos gays

Um estudo da Universidade Cambridge comparou filhos de mães lésbicas com filhos de mães héteros e não encontrou nenhuma diferença significativa entre os dois grupos quanto à identificação como homossexuais. O que o estudo revelou, na verdade, é que filhos de mães ou pais homossexuais, por crescerem num ambiente de diversidade, se tornam mais abertos às diferenças.

“Basta ter um olhar um pouco científico e constatar que se a maioria das pessoas homossexuais descendem de pessoas heterossexuais, então por que o contrário seria diferente? Sexualidade não é opção e nem exemplo, é desejo e identidade, e por isso não será construído por um outro”, argumenta a psicóloga.

3. Filhos de homossexuais terão problemas psicológicos

Um estudo realizado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo revela que a criação e educação de crianças por casais homossexuais não causa por si só danos psicológicos aos filhos, uma vez que a função psíquica materna ou paterna pode ser exercida igualmente por pessoas do mesmo sexo.

“É simples notar que toda a questão é sobre a qualidade do conteúdo e não sobre formato. Há crianças com pai e mãe imersas em grande sofrimento psíquico, com entraves para o seu desenvolvimento, e outras saudáveis sendo criadas apenas por uma tia, por exemplo. Uma criança precisa de um ou mais adultos que se disponham ao trabalho de construção de vínculo que inclua a responsabilidade de cuidar, acolher, educar, transmitir as regras e leis de nossa cultura, compartilhar das potências e dos limites, e essa função parental não é relacionada ao sexo, nem a uma dupla, por isso é possível ser muito bem feita por uma, no caso de maternidade solo, ou duas mães” conclui Marques.

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E assim, entre mitos descabidos, filas de adoção, parcerias online e apelos às novas tecnologias, a gente vai mostrando como é e sendo como pode, na luta para despir essa invisibilidade que insiste em cobrir os nossos quereres. Nós existimos, resistimos e também maternamos.

*Alguns nomes das entrevistadas e entrevistados foram trocados a pedido.

Reportagem originalmente publicada na Revista AzMina