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Venezuelanas buscam transição capilar na luta contra o racismo

"Para a sociedade, é algo totalmente normal dizer que este cabelo é ruim", explica uma das profissionais do salão de beleza - Baylee Gramling/Unsplash
"Para a sociedade, é algo totalmente normal dizer que este cabelo é ruim", explica uma das profissionais do salão de beleza Imagem: Baylee Gramling/Unsplash

14/09/2021 14h05

Uma cabeleireira molda, mecha por mecha, o cabelo de Victoria em um salão de beleza da Venezuela. Depois de alisá-lo por anos, ela quebrou a "ditadura" do cabelo liso neste país em que o racismo também é muito estrutural.

"Já estava cansada de ir ao salão, de não ter liberdade de molhar o cabelo (...). Sentia como se fosse uma escravidão", conta à AFP Victoria Mejías, de 28 anos, enquanto recebe uma hidratação capilar neste pequeno salão no centro de Caracas.

Hoje, ela se sente "divina" com seus cachos naturais, mas nem sempre foi assim. Sentia vergonha de seu cabelo crespo, que é frequentemente chamado de "ruim" na Venezuela.

"Minha mãe começou a alisar meu cabelo aos 12 anos", lembra. "Me sentia na obrigação de me mostrar para as pessoas de outra forma, porque o cabelo liso dá 'status'".

A Venezuela, assim como o Brasil, tem uma população muito diversificada, resultado da miscigenação entre indígenas, conquistadores espanhóis que chegaram em 1498 e os escravos africanos que foram levados para as colônias.

No século passado, o país também recebeu os europeus que escapavam da guerra e os latino-americanos que fugiam de ditaduras, ou de conflitos armados.

Apesar desta rica variedade cultural, na Venezuela, "tudo o que vem da negritude é visto como ruim, ou (...) exótico, ou seja, não se encaixa no 'normal'", explica à AFP a socióloga Zulima Paredes, que escreveu sobre a estética do cabelo afro.

Paredes afirma que a discriminação racial "ainda acontece" neste país sul-americano, que impõe uma "assimilação cultural" do cabelo liso para se adaptar socialmente.

Victoria disse "chega" há dois anos. Cortou seus fios alisados, dando lugar a cachos que já cresceram até os ombros.

"Podem se acostumar, porque este é o meu cabelo, e é assim que vão me ver!", disse a amigos e conhecidos.

- Rainhas... de cabelo liso - Ludizay Gardona, que atende Victoria, trabalha no Afro Caracas, salão especializado em cabelos crespos e cacheados. Várias clientes confessam a ela que "sequer se lembram de como era seu cabelo" após anos de química para mantê-lo liso.

"Há pessoas que alisam o cabelo desde os 6, desde os 5" anos, lamenta Gardona, de 35.

"Ainda existe um estereótipo sobre o que é ser venezuelana, ou sobre o que é a beleza venezuelana", disse Paredes.

Segundo ela, este padrão é reforçado em concursos como o Miss Venezuela, outra obsessão nacional.

Em 2018, coroaram rainha nacional da beleza Isabella Rodríguez, uma mulher negra de cabelo alisado que cresceu no bairro de Petare, em Caracas. Ela foi alvo de comentários racistas pela cor de sua pele e por sua origem pobre.

Sete venezuelanas ganharam o Miss Universo, todas de pele clara e cabelo liso.

As pressões sociais para alisar o cabelo são comuns para as mulheres em diferentes partes do mundo, mas muitas estão se rebelando contra essa prática, especialmente no Brasil, no Uruguai e nos Estados Unidos.

Cabelo "ruim"?

Com tranças na altura do quadril, Gabriela Delgado, outra profissional deste pequeno salão, usava o cabelo alisado há quatro anos.

"Fui a um barbeiro e pedi que passasse a máquina, porque eu precisava ver como era meu cabelo natural", lembra a cabeleireira de 28 anos.

"As pessoas me perguntavam se estava deprimida, se alguma coisa tinha acontecido", conta.

- "Não pode ser ruim" - A temática foi explorada em "Pelo Malo", filme venezuelano de Mariana Rondón, que ganhou a Concha de Ouro do Festival de San Sebástian, em 2013.

O filme conta a história de um menino obcecado com alisar seu cabelo crespo para se tornar um cantor famoso e destaca os esforços cidadãos e jurídicos para combater o racismo dentro do país. Em 2011, a Venezuela promulgou uma lei contra a discriminação racial.

Mas há exclusões, lamenta Delgado.

Por exemplo: "ir à escola (...) com seu cabelo afro e não poder entrar (...). Vai ter que entrar com o cabelo preso, com uma trança, ou vai ter que alisá-lo".

Paredes cita seu próprio exemplo, vítima de racismo no mercado de trabalho: "Mandei meu currículo (...) e me disseram 'não, com esse cabelo você não entra aqui'".

"Para a sociedade, é algo totalmente normal dizer que este cabelo é ruim", diz Delgado. "Este cabelo não causou mal a ninguém, não pode ser ruim", conclui.