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Opinião

Paul Auster: morre o homem, mas o escritor e seus livros não morrem jamais

Quando soube da notícia da morte de Paul Auster, temi que me pedissem para escrever algo sobre ele. Como quase todo temor, no centro dele havia um desejo: o de que me pedissem para escrever algo sobre ele.

O temor, na verdade, se devia à vergonha de precisar admitir que não li quase nada de Paul Auster — afinal, sentimentos diferentes vêm tantas vezes misturados ou embrulhados juntos. Somando temor e desejo, eu poderia escrever sobre a vergonha que nos assalta (principalmente a nós, que escrevemos ou vivemos nos livros) por não ter lido quase nada de Paul Auster, nem "Moby Dick", de Melville, nem "Guerra e Paz", de Tolstoi. Como assim você não leu "O processo", de Kafka?

Mas não. Paul Auster morreu, por que eu escreveria sobre não tê-lo lido, sobre não conhecê-lo o suficiente?

Aí abri meu Instagram (geringonça que ocupa nossos preciosos instantes de vacilação e tédio) e Paul Auster apareceu ao lado dela, ao lado de Siri Hustvedt, que essa sim, li (mas não muito. Para quem gosta de ler e é um pouco rígido consigo, nunca se leu o suficiente). Siri Hustvedt foi casada com Paul Auster por 43 anos e esteve ao seu lado também nos dois últimos, os anos do câncer de Paul. Em suas redes sociais, ela dava notícias da Cancerlândia, o tenebroso país que também visitei com meu pai.

(As notícias da Cancerlândia do meu pai eu dei no livro "As pequenas chances".)

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Mas as notícias agora nem eram exatamente da morte, ou não apenas dela. Eram mais de seus arredores, da impossibilidade da própria notícia. "Fui ingênua, mas imaginei que seria eu a pessoa a anunciar a morte do meu marido, Paul Auster".

Aqui, imagino a dor de uma mulher que perdeu o companheiro de décadas e perdeu também a perda como lugar íntimo. Imagino a confusão, o baque (porque a morte, mesmo que esperada, é sempre um baque), a clausura de um coração que bate apertado demais, o céu nublado invadindo a casa, os corredores todos tomados pela névoa cinza, fuligem, tristeza. Imagino porque conheço a sensação de estar perdida, os hábitos todos que constituem a rotina agora tornados estranhamento puro.

"Ele morreu conosco, sua família, ao redor dele em 30 de abril de 2024 às 18:58. Algum tempo depois, eu descobri que antes mesmo que seu corpo fosse levado de nossa casa, as notícias de sua morte circulavam na mídia e os obituários já tinham sido postados."

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A morte, final de muitas visitas à Cancerlândia, Siri Hustvedt continua escrevendo sobre ela. Imagino a palavra como necessidade, uma escritora precisando escrever; imagino que ela já havia antecipado inúmeras vezes como seria o momento, como poderia dar a notícia, como seria a própria dor, e o fato de que a notícia lhe foi roubada é possivelmente apenas o indício de que nada, diante da morte, sai como o planejado (de que nada, na vida, sai como o planejado).

Ela escreve, escreve, e seu grande texto não cabe, ultrapassa os limites do tamanho pequeno do Instagram. Ela corta o texto e posta os trechos em separado nos comentários, e os trechos saem da ordem e os comentários de um monte de gente os atravessam. Tudo fica confuso (os comentários dos outros atravessando o texto dela, o luto dos outros atravessando o luto dela), e com certeza não foi proposital, mas foi muito realista para retratar a confusão abismal de um luto recente.

"Nenhum de nós foi capaz de ligar ou escrever para as nossas pessoas queridas antes que a gritaria online começasse. Essa dignidade nos foi roubada. Eu não sei a história inteira sobre como isso aconteceu, mas eu sei disso: é errado."

Desculpe por nós, Siri, os que acham que o escritor vem antes do homem, os que acham que ler é ter e que ter é a melhor maneira de gostar (Saramago em "O conto da ilha desconhecida").

Siri escreve sobre Paul, o seu Paul, que narrava a história do próprio câncer para cada médico para o qual precisava contar seus sintomas; Siri o defende, o protege dos ataques que percebe que o amor alheio lhe infligem. Siri o reivindica, refuta as classificações, o mantém na instabilidade da dúvida (vivo, vivo, vivo).

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(E então eu me permito escrever este texto hesitante, envergonhado, que duvida de si.)

Talvez Siri requisite o luto para si porque seu marido morreu, morreu ali diante dela, naquele recinto cheio de livros do chão ao teto, com janelas altas pelas quais entra a luz. E porque o escritor, embora já não possa escrever, não deixará mais de ter escrito. Morre o homem: o escritor e seus livros não morrem jamais.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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