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Mariana Kotscho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Brigas políticas nas escolas escancaram racismo e preconceitos

DGLimages/Getty Images/iStockphoto
Imagem: DGLimages/Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

13/11/2022 04h00

Passadas duas semanas das eleições, golpistas ainda insistem em alguns atos antidemocráticos e o confronto político segue quente não só entre eleitores, mas também entre filhos e filhas destes eleitores.

Uma amiga me contou que João e Maria brigaram feio na escola. Ele dizendo que o Lula roubou as eleições e Maria rebatendo que Bolsonaro não gostava do irmão dela, que tem síndrome de Down. Maria e João têm 5 anos. Maria é a filha da minha amiga, que contou que a professora sofreu para interromper a discussão em sala de aula.

Situações mais graves vimos entre estudantes mais velhos, já adolescentes. Ataques racistas provocados pela discussão pós eleições resultou na expulsão de 8 alunos do Colégio Porto Seguro, em Valinhos (SP). E deviam ser expulsos mesmo, pois sabiam muito bem o que estavam fazendo. Eles criaram no WhatsApp um grupo chamado "anti petismo", onde compartilhavam não só mensagens racistas, mas também homofóbicas, gordofóbicas e até nazistas.

Acho importante reforçar que, em geral, essas crianças e adolescentes reproduzem o que aprendem em casa e isso mostra que a educação precisa acontecer também entre os adultos. É preciso ter limites para impor limites e entender a grande diferença entre liberdade de expressão e crime. Nem tudo pode ser dito, nem tudo pode ser feito. Uma democracia também tem regras e leis. E falas racistas, homofóbicas, nazistas são criminosas.

Fui conversar sobre tudo isso com Paulo Bueno, psicanalista e doutor em psicologia social. Ele é autor do livro "Coisas que o Pedro me ensina". Minha primeira dúvida era no sentido de entender o que motiva essas atitudes criminosas entre adolescentes. Paulo me explicou que a motivação aponta para a dimensão subjetiva das determinações dessas atitudes.

Uma outra questão é sobre as condições que permitem que aconteçam atos dessa natureza. E um ponto central é o de que vivemos em uma sociedade que se sustenta sobre as bases do racismo estrutural, institucional e cotidiano.

"Destaco essas três definições de racismo para evidenciar o fato de que as instituições e os atores da cena cotidiana são, também, responsáveis pelas suas manifestações. Assumir que o racismo é estrutural não é um salvo-conduto para sua manutenção, como se fosse não tivéssemos nada a fazer. Um dos pontos que permite sua continuidade, inclusive, é a omissão institucional", disse Paulo.

Para o psicólogo, existe uma responsabilidade parental em relação à manutenção das condições que permitem que tais atos ocorram: "Tomando o cuidado para não fazer generalizações, creio que primeiramente é preciso reconhecer a existência de pais que são abertamente racistas e que apoiam atitudes como as que estão ocorrendo. São famílias em que a diferença no tratamento de pessoas negras e de classes sociais mais baixas fazem parte do cotidiano, em que as piadas racistas são toleradas ou até mesmo incentivadas."

Paulo Bueno reforça que tais práticas devem ser repreendidas, mas ele ressalta que, por outro lado, há famílias que desejam somar-se à luta antirracista e dá alguns caminhos:

MK: Paulo, como combater o racismo?
PB: É preciso, primeiramente, furar a bolha que envolve grande parte das famílias de classe média. É uma bolha que só faz refletir o branco diante do espelho cultural, seja através dos brinquedos, dos livros, como das pessoas.

Não há antirracismo ali onde não é oferecida a oportunidade de convívio com crianças e adolescentes de outras composições raciais; onde os personagens dos livros, filmes, séries e desenhos só refletem a raça branca. É preciso que os pais e mães se encarreguem de pautar esse tema continuamente nas escolas, clubes e espaços de lazer frequentados pelas crianças. Os momentos de crise devem ser encarados como oportunidades para enxergarmos aquilo que estava oculto e, a partir disso, atuarmos.

Como disse anteriormente, o racismo não está apenas nos ataques violentos, mas também na omissão institucional. Essa omissão não se resume à punição, pois inclui a ausência de projetos sólidos de construção de práticas antirracistas, com currículos afirmativos, com políticas pela inclusão e pela diversidade.

Compreendo que não existe escola antirracista. Pois assim seria fácil, bastaria declarar-se antirracista. O antirracismo só se realiza enquanto prática, dá trabalho, pois é preciso sistematicamente elaborar, executar e reavaliar projetos que visem a modificação da cultura escolar.

MK: Como lidar com a vítima e como lidar com estes agressores? A punição educa?
PB: A punição, por si só, não educa, mas a omissão tampouco. É preciso que a escola legitime a queixa do aluno e o sofrimento decorrente dessa situação. Vivemos em um país que se caracteriza pelo esquecimento político da violência estatal e pela anistia dos agressores. Esse é o nosso contexto.

A resposta institucional deixa marcas simbólicas que indicam qual o lado em que a escola se posiciona em relação à problemática. O rigor dessa resposta deve ser correlativo à gravidade do ato e de suas consequências.

Junto a isso, é preciso um projeto educativo. Ou seja, fazer aquilo que está ao alcance da escola. Mas não confundamos, racismo não é puramente resultado da falta de informação ou de uma educação deficiente. Racismo é supor que a diferença racial vem acompanhada de uma inferioridade por parte do grupo discriminado. Tem a ver com intolerância. Isso não se desconstrói com uma simples intervenção ou com aulas.

É preciso que pensemos seriamente em grupos de discussão do tema com os agressores, grupos mediados por profissionais devidamente preparados para a tarefa.

A vítima precisa ser acolhida (pela família, pela escola, pelos amigos e, identificando-se a necessidade, deve ser encaminhada para psicanalista ou psicólogo). Tem um ponto que me parece importante comentar que diz respeito às organizações estudantis ou extra institucionais que vêm à público denunciar as situações de racismo. Há adolescentes que preferem assumir a linha de frente na luta, mas creio que essa deve ser uma escolha do jovem e de sua família. Não devemos cobrar da vítima uma posição ativa, quando muitas vezes ela está devastada por conta da situação. A superexposição em tempos de redes sociais, pode potencializar o sofrimento para algumas pessoas.

MK: O que motiva esses jovens a agirem assim e quais os riscos disso para a sociedade?
PB: Imediatamente após o início da Primeira Grande Guerra, Freud escreveu um texto chamado "Reflexões para tempos de guerra e morte" em que aponta que em períodos de paz a sociedade reprime e desencoraja a violência e, em contrapartida, nos tempos de guerra permite e, até mesmo, incentiva as tendências hostis que se dirijam ao inimigo.

Não estamos em guerra, mas vivemos um período de polarização em que, um dos lados, é constantemente instigado à liberação de suas inclinações agressivas contra aqueles que se encontram no campo progressista.

Não é à toa que esses ataques partem de grupos de adolescentes alinhados com a extrema-direita. Junto à autorização do racismo, vemos cada vez mais a veiculação de mensagens contra nordestinos, mensagens misóginas, homofóbicas, transfóbicas e aporofóbicas partindo de tais grupos. Essa escalada do ódio é extremamente perigosa.

MK: Isso reflete uma falha na educação que vem de casa?
PB: Acho temerosa uma tradução imediata que afirmaria que todo adolescente que tenha cometido ato racista teria uma falha educacional ou mesmo cívica partindo de sua família. A situação é sempre mais complexa. E a família do agressor precisa ser trazida para perto, precisa estar implicada no processo.