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Débora Miranda

REPORTAGEM

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Médica no futebol do Timão: 'Causei estranheza, mas sempre fui respeitada'

Ana Carolina Ramos e Côrte, médica do Corinthians - Daniel Augusto Jr./Agência Corinthians
Ana Carolina Ramos e Côrte, médica do Corinthians Imagem: Daniel Augusto Jr./Agência Corinthians

Colunista do UOL

18/04/2021 04h00

A cena é tão rara que o narrador da TV destaca: "A médica do Corinthians, doutora Ana, entra em campo". Um médico entrar em campo para atender um atleta machucado não é nada de mais, não fosse uma mulher.

Ainda são poucas as profissionais mulheres que atuam em equipes de futebol masculino. Mas Ana Carolina Ramos e Côrte, 41 anos, conquistou seu espaço no Corinthians e é ela quem os torcedores veem no gramado quando algum dos jogadores precisa de atendimento médico.

"A área da medicina do esporte ou da ortopedia, de fato, ainda tem menos mulheres do que homens —desde a formação acadêmica. É um ambiente pouco acostumado a mulheres e, por isso, mulheres têm mais dificuldade de entrar", afirma Ana, que chegou ao Corinthians enquanto fazia pós-doutorado no Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo).

"Temos profissionais muito boas. Talvez falte um pouco de oportunidade", conclui ela, que, durante os estudos, dedicou-se a tratamento e prevenção de lesões —portanto, não tinha lugar melhor para estar do que em um time de futebol.

Acompanhou o Corinthians em 2015 e 2016 para a pesquisa e, em 2018, foi convidada por Joaquim Grava, consultor médico, para integrar a equipe do Timão.

"No futebol, tenho certeza de que a primeira vez que cheguei causei estranheza. Mas fui muito bem recebida e sempre respeitada. Acho que a minha presença não gera constrangimento aos jogadores, gera respeito", define ela.

No vestiário, ela conta, só entra quando precisa. "Já aconteceu, por exemplo, de eu ter que suturar atleta no vestiário. Aí entro e sou profissional. Mas se não preciso estar lá, eu saio. Nunca passei por nenhuma situação desfavorável."

Uma das médicas mais famosas do mundo do futebol masculino é Eva Carneiro, que atuou no Chelsea. A história dela, no entanto, não teve um desenrolar tão tranquilo quanto a de Ana. Ela foi demitida do clube inglês após um incidente em agosto de 2015, quando correu para dentro de campo para tratar o jogador Eden Hazard, que precisou deixar o gramado posteriormente.

A decisão da médica irritou o então técnico do time, José Mourinho, pois a equipe já estava com dez jogadores, e ele a xingou de "filha da p...". Eva processou o clube e formalizou queixas de discriminação sexual e abuso contra Mourinho. O caso terminou em um acerto judicial confidencial.

Três machucados em cinco minutos

Ana entra em campo para atender os jogadores, quando necessário - Rodrigo Coca/Agência Corinthians - Rodrigo Coca/Agência Corinthians
Ana entra em campo para atender os jogadores, quando necessário
Imagem: Rodrigo Coca/Agência Corinthians

Da estreia dentro de campo Ana não se esquece. "Foi no dia 18 de julho de 2019, na Arena Corinthians, e o jogo era contra o CSA", diz, convicta. "Eu estava receosa com a torcida, em como encarariam uma médica mulher. A minha preocupação era se eu ia entrar em campo naquele dia. Pensava: 'Tem que ser hoje!'. Mas com cinco minutos de partida eu já tinha entrado três vezes, nem deu tempo de perceber", lembra, rindo.

"Foi muito especial", conclui a médica, que é de Brasília, mas se orgulha em dizer que tem a família toda corinthiana. "Meus pais, minha avó, todo o mundo. Então, para mim, tem essa grandeza. É muito intenso. Futebol é muito intenso. Na quarta-feira ganha e está tudo lindo, no domingo perde e já não está mais. É difícil lidar com essa montanha-russa. Tem que estar preparada o tempo todo. E no Corinthians mais ainda. Nunca tinha vivido essa intensidade, mas é lindo ver a torcida apoiando o time."

Outro momento marcante de que Ana se recorda foi a primeira vez que o Timão esteve em Brasília, sua terra natal, desde que ela estava trabalhando no clube.

"A gente jogou lá contra o Fluminense. Minha família foi para a arquibancada, e meus sobrinhos entraram em campo com os jogadores. Foi um dos momentos mais especiais, um dos dias mais felizes da minha carreira."

Pandemia e Olimpíada

Questionada sobre se o futebol deveria parar por causa da pandemia do coronavírus, a médica afirmou apenas que a decisão não cabe a ela e que envolve esferas superiores. "O que temos que tentar fazer é garantir a segurança dos nossos jogadores, da comissão técnica e do estafe. Por isso, temos trabalhado com esse protocolo de bolhas." Os jogadores têm permanecido continuadamente no centro de treinamento.

"Estamos fazendo testagem diária, inclusive com os funcionários que saem do CT e voltam todo dia para trabalhar. Os jogadores também são testados praticamente todos os dias. O objetivo é diminuir o risco de transmissão", conta ela, que já testou positivo para covid-19, mas diz que ficou assintomática.

Ana também atua como coordenadora da área médica do COB (Comitê Olímpico do Brasil). Ela já trabalhou com esportes olímpicos, como canoagem e ginástica artística. E também demonstra peocupação com o efeito do coronavírus na Olimpíada, embora o COI (Comitê Olímpico Internacional) já tenha confirmado a realização dos jogos em Tóquio.

"Cada confederação tem um médico, e eles nos ajudam nesse cuidado e nesse controle [para que os atletas não se contaminem]. Estamos fazendo testes com frequência. E, se tudo correr do jeito que a gente espera, a expectativa de medalhas para o Brasil é grande, inclusive pelas novas modalidades, como surfe, skate e caratê."