Cris Guterres

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Opinião

Trabalho de cuidado: por que as mulheres negras enfrentam mais desafios

Já faz um tempo que eu insisto em utilizar este espaço aqui da coluna de Universa para reclamar, informar e dialogar sobre o desafio que é ser uma mulher com jornada dupla ou tripla neste país. Por isso, quando soube do tema da redação do Enem deste ano, eu me senti feliz por entender que um assunto de imensa relevância estava sendo cobrado como questão de prova para acesso no ensino superior, uma vez que a visibilidade do tema é uma das ações necessárias para a sua solução.

Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil, especialmente quando fazemos os devidos recortes de raça, são questões cruciais que merecem atenção e ação. O trabalho de cuidado não remunerado e não reconhecido, desempenhado pelas mulheres, é uma peça fundamental no tecido social e econômico do país. No entanto, a invisibilidade desse trabalho, quando observado à luz das disparidades raciais, se torna ainda mais complexa e problemática.

Historicamente, o trabalho de cuidado de crianças, idosos, doentes e tarefas domésticas tem sido associado às responsabilidades das mulheres. Se você não está executando o trabalho de cuidado necessário pela sua existência é muito provável que uma mulher o esteja executando sem que seja remunerada por isso. E um dos processos de invisibilização deste trabalho é a romantização, a ideia de que este trabalho é feito por amor te leva a crer que ele não é pesado. Sua mãe faz por amor, sua esposa faz por amor, essas frases são introjetadas na nossa cabeça, mas na verdade, nós mulheres, estamos sobrecarregadas, irritadas, exaustas, sozinhas e mal-amadas. Entenda mal-amada aqui no sentido de quem não recebe amor.

Essa realidade, por si só, já representa uma desigualdade de gênero que recai de maneira desproporcional sobre as mulheres, limitando suas oportunidades de educação, carreira e participação na força de trabalho formal. Quando observamos a interseção entre gênero e raça, as desigualdades se acentuam. As mulheres negras no Brasil enfrentam uma série de desafios adicionais em relação ao trabalho de cuidado. São elas as mais afetadas pelo desemprego, subemprego e falta de acesso a oportunidades de educação. Isso pode levá-las a desempenhar um papel ainda mais significativo nas tarefas de cuidado, uma vez que têm menos acesso ao mercado de trabalho formal.

Além disso, as mulheres negras frequentemente enfrentam estigmas e preconceitos que as relegam a trabalhos mal remunerados e de baixo prestígio, o que pode tornar ainda mais difícil para elas equilibrar suas responsabilidades de cuidado com suas aspirações profissionais. A discriminação racial também pode dificultar o acesso a serviços de saúde e educação de qualidade, tornando o trabalho de cuidado mais desafiador e desgastante.

Então, respondendo à questão do Enem, não há como enfrentar os desafios da invisibilidade do trabalho do cuidado realizado no Brasil sem adotar uma abordagem interseccional, que leve em consideração não apenas o gênero, mas também a raça. Isso implica em políticas públicas que busquem diminuir as desigualdades raciais e de gênero em conjunto. Políticas de igualdade salarial que possam garantir que as mulheres, especialmente as negras, recebam salários justos pelo trabalho de cuidado e quaisquer outros empregos que desempenhem e a garantia plena de aposentadoria para estas mulheres. Desenvolver políticas de assistência à infância que permitam que as mulheres equilibrem suas responsabilidades de cuidado com suas carreiras, tornando o trabalho de cuidado mais equitativo e combater o racismo em todas as suas formas são ações fundamentais para criar uma sociedade mais justa e igualitária, na qual todas as mulheres tenham oportunidades iguais.

Os desafios são complexos e interconectados, envolvem questões de gênero e raça. É fundamental que o governo, a sociedade civil e a comunidade acadêmica trabalhem juntos para desenvolver políticas que reconheçam e valorizem o trabalho de cuidado das mulheres, especialmente das mulheres negras e periféricas. Trazer luz a essa discussão como fez o Enem é primordial para promover a conscientização sobre a importância do trabalho de cuidado e sobre as desigualdades que afetam as mulheres, em particular as mulheres minorizadas.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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