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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mulheres, vamos falar de afeto para nos distrairmos da dor dos últimos dias

"O sorriso de um filho me faz acreditar que a vida pode ser gostosa e convidativa", escreve colunista - Getty Images
"O sorriso de um filho me faz acreditar que a vida pode ser gostosa e convidativa", escreve colunista Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

29/06/2022 04h00

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Nesta semana, quero falar de coisas que me alegram. Estamos exaustas, sendo bombardeadas com intensidade há bastante tempo pelas notícias falando de violências contra as mulheres. Com o avanço do fascismo subjetivo implantado debaixo das nossas entranhas, nós estamos cada sendo atacadas, cada vez mais, por sujeitos que projetam em nós o ódio que eles têm de si mesmos. Não há como lutar sem parar e não respirar um pouco. Gosto de me lembrar das coisas que me fazem sorrir numa tentativa de ganhar fôlego para continuar em luta por nossa liberdade.

E falando em coisas que me fazem sorrir: eu achava que a coisa mais gostosa que podia existir no mundo era chocolate até que descobri o sorriso de filho. Longe de mim querer te enfiar goela abaixo a ideia da maternidade como fenômeno natural e instintivo da condição de ser mulher. Nunca! Sei que estas são construções sociais de controle do nosso corpo. Mas é que o sorriso do meu filho é lindo mesmo, e eu quero contar ao mundo o quanto esta ligação tem me feito feliz mesmo com os desafios que vêm de brinde no processo.

O sorriso desse menino me faz acreditar que a vida pode ser gostosa e convidativa como são os momentos ao lado dele. Já contei aqui, em outro texto, a minha história com o Rafael. Sou mãe de um menino que nas próximas semanas completará 18 anos, e estamos juntos há pouco mais de três anos.

Nos conhecemos, nos gostamos e decidimos morar juntos, eu como mãe e ele como filho, depois de uma jornada de nove meses em que fui madrinha afetiva dele. Eu, muito coruja, daquelas mães que colocam o filho debaixo da asa e tentam proteger de tudo e de todos, e ele muito livre, sempre querendo que eu levante a asa para que ele possa sair e voar para conhecer tudo e todos.

A adoção de um adolescente tem sido uma experiência fantástica para mim. Tenho me saído uma mãe maravilhosa e não preciso que meu filho ou que as pessoas ao meu redor me digam isso, eu mesma consigo analisar minhas atitudes e não me furtar de me elogiar enquanto uma mãe empenhada em proporcionar uma vida de aprendizados ao Rafael.

Quando ele veio morar comigo tinha 14 anos, um peito cheio de inseguranças e um passado inundado de dificuldades. Eu só tinha em mim uma imensa vontade de me divertir enquanto exercia a maternidade. Mal sabia eu que os desafios seriam muito maiores do que imaginava. Estava com aquela visão romantizada da adoção que é vendida em reportagens de TV.

Nessas entrevistas, as pessoas não falam dos desafios, dos testes, das noites sem dormir, do período de adaptação. A gente faz essas descobertas durante o período de habilitação para receber o filho, mas ainda assim eu tinha certeza de que comigo ia ser diferente. Imagina, eu vou ser a mãe mais legal do mundo, nós não vamos brigar, vamos falar a mesma língua, vamos rir e nos divertir o tempo todo.

Coitada daquela Cristiane dos meses iniciais, sofreu muito. Quantas vezes liguei chorando para minha terapeuta ou para minha doula dizendo não saber lidar com algumas situações costumeiras de um dia a dia entre mãe e filho adotivo. E por que eu deveria saber? Tudo era novo. Essa ideia de que maternidade é instintiva me fazia acreditar que eu tinha que saber ser mãe. Está no meu instinto p**** nenhuma. Hoje eu acredito que essa história de instinto materno é só mais um dos artifícios ideológicos do patriarcado para construir controle sobre a nossa sexualidade.

Tem mulheres que querem ser mães e outras não, e nenhuma delas têm instinto. Elas vão aprendendo com os filhos, com as experiências que tiveram com as próprias mães ou com outras mães ao redor. É assim que estou descobrindo, há três anos, a mãe que quero ser. A cada dia faço uma nova descoberta e vou desenhando essa mãe que vem surgindo.

Hoje, quando olho pro meu filho e lembro do que vivemos até aqui, a primeira certeza que me vem é a de que o amor e o afeto são capazes de mudar a realidade de qualquer pessoa.

Rafael, quando chegou aqui, nunca havia lido um livro, estava três anos atrasado na escola e não sabia fazer contas básicas de soma e multiplicação, não sabia o alfabeto e vinha sendo aprovado ano a ano na escola nesta política cruel educacional que forma cidadãos não pensantes. Uma professora particular com uma vivência parecida com a dele foi a solução naquele início.

Foi difícil, por vezes eu quis desistir das aulas. Rafael se escondia da professora, a cada semana eu ouvia uma reclamação: não lia o livro, não fazia a lição. Mas ela sempre me dizia: não desiste que ele é muito inteligente. Não desisti.

Tenho orgulho do meu filho e da pessoa que ele vem se tornando, mas tenho muito orgulho de mim também, que venho o ensinando que quando a garota diz não, é para levantar e ir embora. Que o corpo feminino não é uma propriedade do homem, que tarefa de casa é responsabilidade de todos que moram na casa, sejam homens ou mulheres, ou que sexo com vulnerável é crime. São lições básicas de uma mãe que também fala para ão correr da polícia porque você é preto, para não duvidar do seu potencial, não deixar que ninguém defina o seu futuro e ser feliz.

Obrigada por ter lido este texto até aqui. Já me sinto melhor por tê-lo escrito e me permitido visitar lugares que me são muito carinhosos e acolhedores como o sorriso do meu filho. Agora, vamos voltar para a luta, pois temos muita coisa para derrotar.