Topo

Andrea Dip

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Estupro, fanatismo religioso e violência: caso Flordelis é próprio Brasil

A pastora e ex-deputada Flordelis durante julgamento no Rio de Janeiro - Divulgação/TJ-RJ
A pastora e ex-deputada Flordelis durante julgamento no Rio de Janeiro Imagem: Divulgação/TJ-RJ

Colunista de Universa

11/11/2022 04h00

A ex-deputada, cantora gospel e pastora Flordelis dos Santos de Souza está sentada no banco dos réus para o quarto dia consecutivo de júri popular. Presa desde agosto de 2021, ela é acusada de mandar matar o marido, o também pastor evangélico Anderson do Carmo, em junho de 2019.

O julgamento, que deveria durar três dias, não tem previsão de término. É compreensível: a história de Flordelis é intrincada, complexa, cheia de nós e voltas, detalhes que se abrem em novas histórias, teorias conspiratórias, contradições, abusos, violência, comportamento de seita, fanatismo religioso, fé, pecado. Por um lado, parece uma versão realista e nada fantástica de "Cem Anos de Solidão" de Gabriel García Márquez. Por outro, não poderia ser um retrato mais fiel do Brasil atual.

Flordelis nasceu em uma família humilde na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, e na adolescência frequentava uma igreja evangélica com a mãe. Cantava no coral e foi se envolvendo com atividades sociais.

A religião evangélica é a que mais cresce no Brasil e, sobretudo em bairros pobres e abandonados pelo Estado, se torna cada vez mais um dos poucos espaços de convivência, atividades culturais e engajamento social. Cerca de 30% da população se diz evangélica e a tendência é que, em poucos anos, se torne a religião com o maior número de fiéis no país.

Aos 19 anos, Flordelis foi abandonada grávida pelo namorado e criou a criança sozinha. Mais um dado que se encaixa nas estatísticas brasileiras. Somente de janeiro a abril de 2022, mais de 56.931 crianças foram registradas sem o nome do pai. O Brasil tem hoje cerca de 11 milhões de mães solo e segundo estudos recentes, e 57% dessas famílias vivem abaixo da linha da pobreza.

Em pouco tempo, ela se tornou uma cantora gospel de sucesso e pastora, ao se casar com Anderson do Carmo --um de seus filhos adotivos. Em 1999, o casal fundaria, junto com mais de 50 filhos adotivos, sua própria igreja, chamada Comunidade Evangélica Ministério Flordelis. A década de 1990 foi bastante fértil para a criação de novas igrejas, sobretudo as pentecostais e neopentecostais, a exemplo da Mundial do Poder de Deus, fundada em 1998.

Em 2019, a cantora e pastora tomou posse como deputada federal, eleita pelo PSD do estado do Rio de Janeiro. Foi a mulher mais votada no estado, com mais de 196 mil votos. Sua eleição também é a cara do Brasil atual: para além de um executivo formado por Bolsonaro de militares, conservadores e evangélicos, a bancada evangélica no Congresso cresce a cada pleito. Em 2022, será 20% da Câmara e 16% do Senado, com 115 parlamentares eleitos.

Mas no mesmo ano em que tomou posse, o marido de Flordelis, o pastor Anderson, foi assassinado com 30 tiros. Desde então, a história do casal e da família de mais de 50 pessoas foi se revelando cada vez mais complexa. E, mais uma vez, refletindo o Brasil

Nos meses que se seguiram à morte de Anderson, várias teorias surgiram. A de que a casa da família sediava orgias e a de que o casal explorava sexualmente crianças e adolescentes.

Também há denúncias de que Anderson abusava de suas filhas adotivas e da própria Flordelis, como ela própria disse à Justiça, o que teria motivado seu assassinato. Muito pouco ainda se provou sobre isso, mas algo importante a se ressaltar é que, na maioria dos casos de estupro, o crime acontece dentro de casa: 76% das vezes o abuso é cometido por parente ou conhecido da vítima.

Além disso, se verdadeira a acusação de Flordelis, o que acontecia era um ciclo de violência doméstica, tão comum no país, com ações que frequentemente se repetem e se intercalam.

Nesses ciclos não existe o bem contra o mal: a vítima pode ser também reprodutora de violência, o que não faz com que ela deixe de ser vítima e também não justifica a violência contra outras vítimas. Se há denúncias sobre abusos sexuais cometidos pelo falecido pastor, elas devem ser investigadas, não para que ele seja punido, mas para que as vítimas recebam Justiça.

Quando conversei uma vez com um dos filhos de Flordelis, ele me disse que a casa funcionava como uma seita, com regras próprias e que tudo girava em torno da carreira dos pais e da igreja. Tanto que, após o assassinato do pai e a prisão da mãe, muitos adultos não sabiam procurar emprego, não tinham curriculo e estavam passando por necessidades financeiras.

Essa mentalidade criada dentro da família se encaixa muito bem com nosso momento histórico. Para unir um grupo, é criada uma realidade paralela e solta das convenções sociais, trazendo a ideia de uma verdade que poucos privilegiados --os que fazem parte da seita-- podem ver e viver.

Dentro dessa fantasia criada coletivamente, tudo vai se normalizando e vão se criando regras próprias, assim como rituais internos, sobretudo os que sacrificam o corpo de alguma maneira.

Outras estratégias usadas por líderes de seitas, segundo pesquisadores, é o isolamento das pessoas e a implementação da desconfiança: a imprensa mente, quem está de fora não enxerga. Soa familiar?