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Andrea Dip

REPORTAGEM

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Como o ultraconservadorismo religioso transformou feministas em inimigas

Mulheres em protesto contra abuso sexual no Rio de Janeiro - luizsouzarj/Getty Images
Mulheres em protesto contra abuso sexual no Rio de Janeiro Imagem: luizsouzarj/Getty Images

Colunista de Universa

28/11/2022 04h00

O feminismo é importante para todas as mulheres porque luta pela igualdade de direitos.

Por isso, numa tentativa de esvaziar e cooptar o movimento, a extrema-direita e o ultraconservadorismo religioso atacam a figura da feminista com estereótipos, discursos violentos e misóginos, transformando-a em "histérica", "barulhenta", alguém que "odeia homens", que "profana símbolos religiosos", quer a "morte de bebês" e que não pode ser "feminina" (o que é ser feminina dá toda uma outra discussão).

E nessa tentativa de ganhar as mulheres conservadoras, tentam emplacar o termo "empoderamento", que seria algo mais relacionado ao individual, à meritocracia e ao neoliberalismo. Mas neste momento do Brasil, após quatro anos de governo Bolsonaro, será que essas estratégias de fato estão funcionando? Como as mulheres conservadoras, religiosas, estão vivendo essas contradições em suas vidas práticas?

Essas são algumas das reflexões e questões do livro "Feminismo em Disputa —Um estudo sobre o imaginário político das mulheres brasileiras", de Esther Solano, Beatriz Della Costa e Camila Rocha. A partir de uma pesquisa qualitativa, as pesquisadoras conversaram com mulheres conservadoras e a primeira surpresa que tiveram foi que todas queriam falar —e tinham muito a dizer.

Em entrevista à coluna, a professora de relações internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e doutora em ciências sociais pela Universidade Complutense de Madri Esther Solano explica que a disputa de fato existe e que as mulheres conservadoras, sobretudo as religiosas, se sentem numa espécie de limbo: convivem e identificam o machismo em suas casas, igrejas, nas falas do presidente e acham que a mulher tem que poder decidir quando e se quer ser mãe, mas ao mesmo tempo não se identificam com a figura da "feminista progressista de esquerda" que lhes é apresentada em seus círculos de confiança e informação.

Por causa disso, para Esther, há uma brecha, um potencial espaço de diálogo que pode ser feito, inclusive sobre temas mais difíceis como o aborto. As mulheres conservadoras querem conversar e querem ser ouvidas. "Um elemento muito forte [que aparece durante as conversas] é o de que a mulher deve ter direito a cuidar de seu corpo. A saúde sexual e íntima. Muitas mulheres dizem que têm pavor da ideia de que a filha adolescente engravide. Há uma ideia de proteção às filhas mulheres. Que as filhas mulheres deveriam ter educação sobre sexualidade.

Por mais que se fale sobre o "kit gay" e é verdade que isso apavora muito as famílias, há uma demanda para que haja ensino sobre sexualidade nas escolas porque as mães entendem que esse é um caminho para evitar a gravidez precoce. Então a gente tem possibilidades de formular um caminho nessa disputa" acredita a professora.

UNIVERSA - Vocês entrevistaram mulheres conservadoras e o que parece é que existe bastante divergência ou mesmo confusão sobre o conceito de feminismo. Uma coisa que me chamou muita atenção está logo no começo do livro quando vocês dizem que para as mulheres conservadoras existiria o "feminismo sem ser feminista". O que isso significa para elas?

Esther Solano - Existe uma forte criminalização da "feminista" que tem se tornado para muitas mulheres uma espécie de caricatura —é a histérica, a radical, aquela que detesta os homens, aquela que vai pra rua e grita e evidentemente uma militante é sempre de esquerda. Esse é um processo clássico da extrema-direita, que é a desumanização do outro. Nesse caso, essa caricatura que busca a desumanização da feminista.

Porque o feminismo em si permanece forte no imaginário das mulheres. Elas vivem os avanços do feminismo e elas entendem que a luta da mulher é necessária. Então é muito interessante essa desintegração. "Eu entendo que existe machismo, que existe muita violência e isso é intolerável".

Por isso, atacar o feminismo é muito mais difícil, porque elas sentem na pele a necessidade dessa luta. Atacar as feministas, no entanto, é muito mais inteligente porque há um distanciamento com as feministas mais progressistas que não fazem parte da vida delas. O feminismo tem um enorme sucesso e tem uma penetração cultural e social muito forte. Já o ataque às feministas é mais potente como forma de desconstrução.

Gostaria que você falasse sobre essa tentativa de desmembrar o feminismo enquanto movimento político e o perigo de que grupos conservadores tentem esvaziar e cooptar a luta feminista justamente para acabar com direitos ao invés de promovê-los?

O que a extrema-direita faz é justamente disputar o feminismo. Então, se você vê as lives de cantoras gospel, da própria Damares, elas tratam do tema do "empoderamento feminino" e recolocam o feminismo no campo do conservadorismo. Essa recolocação é dizendo que o feminismo é relacionado a direitos, mas a partir de uma lógica muito mais meritocrática. E se faz também um ataque ao feminismo com relação aos direitos reprodutivos —são os mais atacados. Então isso é muito potente. Porque entendendo que o feminismo não pode ser atacado porque a conquista de direitos do feminismo é importante para essas mulheres também, atacam as feministas e recolocam o feminismo em um outro lugar que faz mais sentido para essa mulher conservadora.

Destaco aqui esse trecho: "65% de mulheres que não se consideram feministas nem antifeministas entendem que o empoderamento das mulheres é uma conquista individual, não coletiva". Essa tentativa de separação do feminismo "individual" da luta política é algo que aparece bastante durante toda a pesquisa, né? Esse discurso do "empoderada" e "bem-sucedida" em contraposição ao feminismo enquanto luta coletiva também é bastante forte nas igrejas evangélicas, sobretudo as neopentecostais que pregam a teologia da prosperidade. Outro trecho que chama a atenção nesse sentido é quando uma mulher diz que a religiosidade é incompatível com o feminismo porque a fé é individual enquanto o feminismo é uma luta coletiva e pública. Você vê conexão entre esse "empoderamento" ou essa ideia enviesada de feminismo com o neoliberalismo também?

A gente vê sim uma conjugação entre neoconservadorismo e neoliberalismo. Você vê movimentos que são conservadores, que se apropriam de conceitos religiosos conservadores e também de conceitos de subjetividade neoliberal meritocrática e fazem uma junção das duas. O exemplo maior disso é de fato a teologia da prosperidade, que é a apropriação de conceitos espirituais que se coloca em uma lógica neoliberal. E aqui estamos falando da mesma coisa a respeito dessa recolocação do feminismo nesse lugar, do indivíduo, da individualidade, da meritocracia. E assim você despolitiza o feminismo porque descoletiviza o feminismo, você tira o feminismo da sua potência de coletivo. Então é possível esse "empoderamento" que é um termo que se usa bastante e que ecoa muito mais no indivíduo do que no coletivo. Por isso se fala muito mais no empoderamento. A luta política é criminalizada, porque é sinônimo de caos e bagunça.

Algumas mulheres também disseram que não poderiam ser feministas porque gostam de ser femininas, se depilam, etc. Você acha que isso é resquício do forte trabalho de desinformação e disseminação de fake news durante o governo Bolsonaro? Qual é o legado que este governo está deixando nesse sentido, na sua opinião?

Acho que o governo Bolsonaro trouxe algumas consequências para esse campo. A primeira e mais evidente é a criminalização mais intensiva do feminismo. O estereótipo da mulher feminista que quer destruir sua família, que é petralha, que vai para as ruas com peitos de fora? Isso foi muito potencializado com a ajuda, nós sabemos muito bem, de organizações religiosas, sobretudo pentecostais e neopentecostais. Agora, também é verdade que as críticas ao feminismo, às feministas e à misoginia foram tão escancaradas e evidentes que muitas mulheres conservadoras reagiram mal ao bolsonarismo e a Bolsonaro.

Elas são conservadoras mas não gostam dos ataques misóginos de Bolsonaro, não gostam de os pastores ficarem com essa obsessão na sexualização, na política, então eu acho que ao mesmo tempo que foi muito forte esse discurso, ele foi tão ostensivo, tão violento que provocou também uma rejeição e uma reação negativa. Ainda assim, por mais que elas reajam a essa misoginia escancarada, elas dizem que não se reconhecem no feminismo de esquerda porque acham que está longe da realidade delas. E elas se sentem no meio do caminho, esse feminismo em disputa mesmo.

A questão do aborto também aparece de forma muito interessante na pesquisa. Todas as entrevistadas concordam que a maternidade deveria ser opcional e que não se pode julgar mulheres que interrompem a gravidez voluntariamente. Apesar disso, se posicionam contra a prática e usam como base dados falsos. Pode falar um pouco sobre isso?

Primeiro que falar de aborto usando essa terminologia é muito complexo porque você tem dois níveis discursivos de análise. O nosso nível discursivo progressista, que é o da saúde pública e da ciência, e o nível conservador, que é religioso fundamentalmente. Aborto é pecado na mensagem bíblica. Então, quando você tem duas análises discursivas tão diferentes, o diálogo é realmente muito complexo. Mas dito isso, se falar de aborto de uma forma nua e crua é dificil, há caminhos e possibilidades. Por exemplo: olha, é verdade que a maternidade não deveria ser obrigatória para nenhuma mulher, a mulher deveria ter direito a escolher se quer ser mãe, quando quer ser mãe e quando não quer.

Então, essa é uma ideia muito mais interessante, de se trabalhar de fato com a ideia da maternidade. Outro caminho é: ok, o aborto é pecado mas é verdade que nós temos um gravíssimo problema porque são as mulheres pobres que morrem fazendo abortos clandestinos. Há uma percepção da desigualdade ligada ao aborto. Essa é uma percepção que aparece o tempo todo. É a mulher negra, pobre, periférica que morre fazendo aborto. Então acho que aí temos uma entrada para elaborar.

E um elemento muito forte é o de que a mulher deve ter direito a cuidar de seu corpo. A saúde sexual e íntima —muitas mulheres dizem que têm pavor da ideia de que a filha engravide adolescente. Há uma ideia de proteção às filhas mulheres. Que as filhas mulheres deveriam ter educação sobre sexualidade.

Por mais que se fale sobre o 'kit gay' e é verdade que isso apavora muito as famílias, há uma demanda para que haja ensino sobre sexualidade nas escolas porque as mães entendem que esse é um caminho para evitar a gravidez precoce. Então a gente tem possibilidades de formular um caminho nessa disputa.

Por fim, o que te chamou mais a atenção fazendo a pesquisa e qual sua percepção final sobre essas conversas?

Minha maior percepção é de que há espaço de diálogo. Acho que, muitas vezes, de forma preconceituosa e apressada, a gente enxerga nessa mulher conservadora religiosa um sujeito com o qual o diálogo é absolutamente impossível. E a gente viu que não é assim. Primeiro, eu acho que uma conquista muito forte do feminismo é que essa mulher está entendendo que há machismo. E essa mulher entende que o feminismo é importante, que a luta por direitos é importante, que a conquista de espaço público é importante.

Ela quer para a filha dela um futuro mais independente, que ela não dependa de homem nenhum. Isso apareceu muito. Existem divergências, mas a realidade do machismo é tão ostensiva e cruel que a gente viu nuances e caminhos abertos, possibilidades de diálogo. Uma coisa muito forte nas entrevistas é que elas queriam muito falar, elas queriam ser escutadas. Se você tem um tema em que há brechas e você tem o campo de interlocução aberto porque as pessoas querem falar, significa que há possibilidade de encontro e diálogo.