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Andrea Dip

REPORTAGEM

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'Povo do Marajó está revoltado com fala de Damares', diz ativista da região

A ex-ministra e senadora eleita Damares Alves: falas sobre abusos sexuais contra crianças estão sendo investigadas -  O Antagonista
A ex-ministra e senadora eleita Damares Alves: falas sobre abusos sexuais contra crianças estão sendo investigadas Imagem: O Antagonista

Colunista de Universa

13/10/2022 14h03

Irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante trabalha no arquipélago do Marajó, no Pará, e é uma referência no combate à violência sexual contra crianças e adolescentes. Nos conhecemos quando fiz uma reportagem na região em 2019 para a Agência Pública. Na época, Damares Alves, então ministra da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos havia dito que o alto índice de exploração sexual de crianças na região era porque as meninas "não usavam calcinhas" e sugeria como política pública a construção de uma fábrica de lingerie.

Caminhamos juntas por alguns municípios, e Marie me mostrou a real situação local: a falta de projetos de proteção das crianças e ao combate à violência, escolas em situação precária e um total abandono por parte do poder público ao arquipélago que na época tinha 14 dos seus 16 municípios na lista dos menores IDHs (Índice de Desenvolvimento Humando) do país, segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil.

No último domingo, Damares voltou a dar declarações gravíssimas sobre o Marajó, desta vez em um culto evangélico em Goiânia. Falou que, enquanto era ministra, ficou sabendo de estupros de recém-nascidos, de casos de crianças marajoaras que teriam dentes arrancados e seriam vendidas para exploração sexual, mencionou detalhes de práticas sexuais violentas e torturas —para uma platéia que continha diversas crianças— e disse ter provas e vídeos.

Atribuiu esses crimes a uma suposta "guerra espiritual" e aproveitou para fazer campanha para Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição à Presidência, dizendo que ele havia comprado essa batalha e que seu governo foi o que mais agiu para combater tais atrocidades. Também citou o programa Abrace o Marajó como um eficiente projeto de enfrentamento a crimes sexuais na região.

Por conta dessas declarações, o Ministério Público Federal enviou ofício à Secretaria Executiva do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para que esclareça as informações de supostos abusos sexuais cometidos na Ilha de Marajó, já que nunca houve denúncia formal feita por Damares. A ex-ministra disse que os relatos foram ouvidos nas ruas da região.

Em nova entrevista, exclusiva para esta coluna em parceria com a Agência Pública, a presidente do Instituto de Direitos Humanos Dom José Luís Azcona, Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, comenta as declarações de Damares e afirma não ter conhecimento dessas políticas de enfrentamento propagandeadas por ela.

"Sinceramente, desconheço. Chamo esse programa Abrace o Marajó de um verdadeiro cavalo de Troia. Um projeto que veio de forma autoritária, racista, elitista, criado de cima pra baixo". E afirma que as falas da ex-ministra geraram grande indignação na população marajoara e entre quem luta contra a exploração sexual na região.


UNIVERSA - A fala de Damares sobre as crianças do Marajó tem repercutido muito e o foco tem sido no absurdo do que ela diz e em possíveis responsabilizações jurídicas que são, claro, aspectos muito importantes. Mas queria saber como você, que é alguém que está na linha de frente ao combate à violência sexual contra crianças no Marajó há muitos anos, vê essas declarações.

Irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante - A fala dela causou grande indignação em todos nós que lutamos contra a violência sexual, sobretudo na população marajoara, que está se manifestando de maneira muito forte e revoltada. É uma fala totalmente desconectada com a da defesa dos direitos humanos. Ela mais uma vez se equivoca de maneira irresponsável.

Não é nem surpresa porque ela sempre se reporta dessa forma sobre nossas crianças e adolescentes do Marajó, com esse estereótipo. Você lembra muito bem da última vez que ela disse que as meninas do Marajó são estupradas porque não usam calcinha.

Aí ela apresenta como solução instalar uma fábrica de calcinhas, o que ela nunca cumpriu, diga-se, porque viu a rejeição, porque a imprensa séria teve coragem de denunciar —você fez uma matéria importantíssima daquela vez sobre isso e viu que deu repercussão. O que ela fez foi distribuir parcas cestas básicas. Então essa fala de agora não é de se espantar quando vem de uma representante do atual governo, que trata pautas tão complexas com uma profunda demagogia, sem levar em consideração dados e sem disponibilizar serviços públicos essenciais.

Se ela teoricamente sabia desses crimes, por que não fez a denúncia às esferas competentes? A solução para esse grave problema da violência sexual exige um esforço conjunto de políticas públicas e o respeito intransigente aos direitos das nossas meninas e meninos que são afetados por essa violência. Que os ponha a salvo de qualquer comportamento cruel e degradante Irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, referência no combate à violência sexual no Marajó

Quando estivemos juntas no Marajó em 2019, você disse que o programa que Damares propagandeia como sendo o principal enfrentamento à violência sexual, inclusive em outros países, o Abrace o Marajó, não tinha ações muito efetivas e que a população local nem sabia do que se tratava. Passados esses anos, você e as pessoas com as quais trabalha viram alguma mudança nesse sentido?
É tudo muito misterioso. Nessa fala dela, no culto, ela menciona o Abrace o Marajó como o maior programa de desenvolvimento da Amazônia. Ele foi duramente criticado por nós e pela sociedade marajoara que criamos uma carta falando que não aceitamos um projeto que nasceu de cima para baixo.

Eu estive com o Tribunal de Contas da União para ver a questão da educação, e nós ouvimos professores revoltados porque foi um programa que não veio com os rostos marajoaras —sempre digo que existem muitos Marajós. Nossas crianças precisam de políticas diferenciadas. A população criticou de forma severa esse programa que veio de forma autoritária, racista, elitista, para uma região que tem história. E que é historicamente atravessada por desigualdades sociais e econômicas. Não teve participação popular.

Mas o que são as ações propostas?
Eu acho que a ação a qual ela se refere é a distribuição de cestas básicas, que chamo de cestas básicas nanicas. Nanico é um termo usado no nordeste para se referir a uma coisa pequena. O que ela criou na verdade foi um pânico moral. É isso que vem na transversalidade do comportamento dela.

Então todo esse enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes que ela diz que fez e que Bolsonaro fez na região não existe?
Desconheço. Sinceramente, eu desconheço.

O Marajó é grande e diverso, como você estava dizendo. Como está a situação da região, passados quatro anos de governo Bolsonaro e ministério Damares Alves?
O governo Bolsonaro trouxe um caos no que diz respeito à proteção de crianças e adolescentes por causa de um desmonte das políticas públicas. E, com a pandemia, houve um aumento exagerado de uma forma visível das desigualdades socioeconômicas. O aumento da fome é alarmante.

A gente precisa se conscientizar que não se pode falar em enfrentamento à violência sexual se não tivermos capacidade de combater a pobreza, a miséria. Chamo de miséria produzida e reproduzida. A situação se agravou e muito. Chamo esse projeto Abrace o Marajó de um verdadeiro cavalo de Troia. Não adianta trazer para a região o que a região não precisa. Se a gente não pensar em programas de geração de emprego e renda pra essa população, vamos ficar o tempo todo falando a mesma coisa. Não adianta.

E educação, irmã? Porque a situação das escolas no Marajó já era terrível antes da pandemia.
Saiu um relatório agora do Tribunal de Contas que aponta a deficiência que existe na educação na região. Como dizia o Paulo Freire, a educação não é tudo, mas é a base. As crianças sempre alegaram que a escola na região não é boa, falta merenda, falta combustível, o transporte é uma precariedade porque os barqueiros não tem combustível para levar as crianças à escola. Sem contar também a precariedade dos serviços de saúde. É uma situação muito grave. E tudo isso fica ainda mais difícil com um governo que não está preocupado com a população.

Me lembro das nossas conversas com conselheiros tutelares, com promotores, de que era muito difícil conseguir trabalhar, era um trabalho de formiguinha mesmo, de pessoas que queriam muito fazer as coisas acontecerem mas que tinham que lidar com essa precarização.
Sim. Mas, agora, imagine: em alguns municípios os conselhos tutelares são totalmente evangélicos e estão de braços dados com essa senhora. É preocupante porque um conselheiro que está na base, na porta de entrada para receber essas crianças e adolescentes, que tem que lidar com todas essas mazelas, não ter sensibilidade e coragem de ficar do lado do pobre. O conselheiro precisa cuidar. Mas tem conselheiros que estão abraçados com essa senhora e preocupados só em fazer campanha política.

O que é pior em ter os conselhos tutelares tomados por evangélicos conservadores?
Eles são alienados. Não têm compromisso com a realidade. E quem se submete a fazer campanha política para alguém que faz uma fala como Damares fez, totalmente desconectada com a realidade, é porque também não tem compromisso social. E não tem compromisso com a transformação da realidade. Esse é um momento muito tenso no Brasil, é um momento de muito ódio.

Durante o culto Damares atribui a violência sexual contra crianças e adolescentes a uma "guerra espiritual". Você, como alguém de fé, o que pensa sobre isso?
Não existe guerra espiritual.

Guerra espiritual quem cria são eles, que pregam coisas absurdas, que estão voltadas a conceitos moralistas, que apresentam modelos de família e comportamento que não são condizentes com nossa realidade.

A guerra espiritual é a guerra da ignorância, da falta de amor fraterno, da incapacidade de sentir empatia social e coletiva. Eu, com toda a formação que tenho, não compreendo a religião nem Deus assim. Deus está no meio de nós, está com aquela população de Melgaço [cidade do Marajó] com fome, clamando por um prato de comida.