Ana Canosa

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Opinião

Se você se sente só em uma relação, perceba se não está morrendo em vida

A "Pedra da Paciência" é um drama de guerra, que direciona os holofotes para a vivência de homens e mulheres em contextos extremistas, nos quais os papéis de gênero são fortemente controlados por crenças religiosas e culturais. A protagonista é casada, tem duas filhas e o marido está em estado vegetativo. A guerra no Afeganistão está acontecendo, seu bairro faz parte da linha de frente dos confrontos. Ela não quer abandonar o marido, mas também não quer deixar as filhas morando ali, tão vulneráveis à violência. Então ela leva as meninas para um local mais seguro e vai diariamente cuidar dele.

Sem que esteja consciente disso, ela entra em um processo de autoconhecimento. Na cultura de seu povo, a relação amorosa não contempla intimidade emocional. As mulheres não devem expressar desejos, críticas ou necessidades afetivas. Sozinha com esse marido que só respira, ela começa a contar seus medos, decepções, angústias e vivências. Passagens familiares, o casamento, o modo como vive — solitária — essa relação. É quase um processo terapêutico, sendo o marido o "terapeuta" que escuta, mas não faz julgamento algum.

O filme traz uma lição importante: em uma relação, para que haja liberdade de existir como pessoa, é necessário que o outro também 'morra' um pouco. É preciso se apartar de algumas convicções, especialmente as inflexíveis, que emergem de um processo de aculturamento da moral, para que possamos nos aproximar da verdade alheia.

Em sociedades binárias, em que tudo é certo ou errado, sobra pouco espaço para dilemas emocionais. As pessoas aprendem a avaliar a própria existência pelo quanto se aproximam das condições preestabelecidas, julgando a parceria pelas faltas que não cumprem na expectativa que temos em nossa escala de padrões. Só que ninguém consegue se expressar verdadeiramente se sente que a outra pessoa já partirá para uma avaliação do comportamento com a régua de um juiz.

Conhecida como os quatro cavaleiros do apocalipse, algumas formas de comunicação levantam defesas e não ajudam na aproximação, especialmente quando estamos diante de situações conflitivas: criticismo (criticar a personalidade do outro e não falar da situação em si); ficar na defensiva (postura de vitimização ou de ataque ao outro); menosprezo (sempre passar a mensagem que se está um andar acima na inteligência, na perspicácia, na experiência, na espiritualidade, na organização, na comunicação, na leitura da vida etc.); e recusa na cooperação (ignorar, recusar conversar, se esquivar).

Em "A Pedra da Paciência", mesmo que o marido esteja inerte, o menosprezo e a recusa são as marcas da não-comunicação. A conversação que só acontece com a condição silenciosa do parceiro vai transformando a mulher, que pode, enfim, ouvir a própria voz. Enquanto uma parte dela vai morrendo também — aquela que se cala —, sua sexualidade desabrocha, mesmo que o entorno pareça árido, triste e doloroso. Não vou contar como, para não dar spoiler.

Se você se sente só em uma relação afetiva, perceba se não está morrendo em vida, justamente porque na sua relação ninguém aceita renunciar a alguma parte de si mesmo. É sobre de qual morte estamos falando, pois o amor também precisa do luto da idealização do outro. Muitas vezes somos nós que não damos conta da verdade alheia, ou de que a parceria se depare com a nossa, tão humana, imperfeita e às vezes perdida.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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