Opinião

Violência sexual no Carnaval só vai acabar com fim do acordo de cavalheiros

Nas ruas apertadas por onde passam os trios elétricos em Salvador vemos um retrato do Brasil. Apesar de esse ser um fenômeno cotidiano, talvez seja nos festejos carnavalescos o momento de maior exposição coletiva das mulheres a todo tipo de violência naturalizada no país.

Na folia, os beijos forçados e toques indesejados eram tomados como práticas rotineiras até pouco tempo atrás. A festa da carne se converteu em um verdadeiro abatedouro de mulheres e coube a elas próprias politizar essa realidade.

Mas no complexo tecido social brasileiro, os avanços são confrontados com violência. A retórica de mulheres livres, circulando pelas ruas com suas mensagens de "não é não", é enfrentada pela perversidade masculina que entende seus corpos como território a ser dominado e invadido. E o tom das ameaças é contundente. Neste ano, foram registrados três estupros, sendo dois coletivos, no Barra-Ondina, o principal circuito carnavalesco de Salvador. De acordo com dados mais recentes divulgados pelo Ministério da Saúde, em 2019 foram registrados 5.372 estupros coletivos no Brasil, 14 por dia.

Essa realidade está conectada a processos de relativização da violência sexual arraigados não só no âmbito social, mas também institucional.

Se olharmos para o caso de estupro de vulnerável, que inclui em seu rol a prática de ato libidinoso contra menor de 14 anos, vemos como os tribunais vão construindo teses para esvaziar o sentido do estupro.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do tema 1121, entendeu pela impossibilidade de se desclassificar o estupro de vulnerável para o crime de importunação sexual. Com isso, o tribunal determinou que, considerando-se a extrema vulnerabilidade das vítimas, as violações sexuais têm de ser enquadradas como estupro, não cabendo argumentos que minimizem o tipo de ato praticado.

A cultura do estupro no Brasil não respeita precedentes

Mesmo diante da impossibilidade de desqualificar o estupro de vulnerável para importunação sexual, em 2022, um julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio da 13ª Câmara de Direito Criminal, firmou entendimento de que a ausência de penetração transforma a violência sexual em "conduta menos invasiva, mais leve". Para quem?.

Com isso, aplicaram a regra do art. 14, inciso II do Código Penal, transformando o estupro de vulnerável consumado em uma "tentativa" de estupro, uma manobra para a diminuição da pena, desvirtuando o fundamento da proporcionalidade para dar uma interpretação que banaliza o crime.

Em 2020, o Superior Tribunal de Justiça proveu habeas corpus a mais de mil presos de São Paulo. Isso porque o Tribunal de Justiça de São Paulo vinha descumprindo a jurisprudência das cortes superiores e condenando pessoas sentenciadas por tráfico privilegiado com pena de um ano e oito meses, a cumprirem pena indevidamente em regime fechado.

Esse tipo de pena estava sendo aplicada pelo TJSP a pessoas apreendidas com pouca quantidade de drogas, com bons antecedentes, que são primárias e não integram organização criminosa. Nesse caso, de acordo com os tribunais superiores, a pena não pode ser a de regime fechado.

Aproximar o cenário dos estupros ocorridos no Carnaval de Salvador das posturas do tribunal paulista é importante para entendermos a dimensão da violência sexual em âmbito nacional.

A polícia não protege as mulheres das barbaridades a que são submetidas. Nos tribunais, crimes de menor potencial ofensivo cometidos por jovens negros são duramente apenados, enquanto a proteção de crianças e adolescentes pela violência sexual é minimizada. É o sistema de justiça criminal operando para a perpetuação das estruturas sociais brasileiras, garantindo que tudo fique no mesmo lugar: brancos dentro das cordas, negros fora, mulheres submetidas em toda parte.

A resposta aos delitos trágicos que ocorreram nas ruas de Salvador durante o Carnaval demanda, portanto, uma resposta profunda. Não se trata de promover uma resposta penal isolada aos autores dos estupros, mas de denunciar as omissões do Executivo na proteção das mulheres nas ruas e da lógica de um judiciário que insiste em minimizar a gravidade das violações sexuais.

Enfrentar o estupro é desafiar bandos de homens que agem de forma coordenada: nas ruas, nos palácios governistas e nos gabinetes dos tribunais. Sob essa perspectiva, falar de estupro coletivo não passa de redundância.

É, afinal, esse grande "acordo de cavalheiros" que precisa ser quebrado para que a violência sexual deixe de fazer parte do Carnaval no Brasil, para que as cordas deixem de definir como se vive na cidade, para que as mulheres possam ser efetivamente livres, antes e depois da quarta-feira de cinzas.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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