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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sou pastora e lésbica e Deus segue falando comigo como faz com Gil do BBB

Reprodução/Globoplay
Imagem: Reprodução/Globoplay

Lanna Holder

Colaboração para Universa

05/04/2021 14h00

Durante uma conversa com um colega de confinamento no "Big Brother Brasil", o participante Gil soltou a seguinte frase: "Deus fala comigo mesmo eu sendo bicha".

Eu quase morri até descobrir essa verdade! Era dia 26 de julho de 2006, depois de um acidente de carro, em coma, intubada e após passar por uma cirurgia que havia durado 22 horas. Quatro costelas quebradas, fígado dilacerado, pulmão direito esmagado, fêmur deslocado da bacia e um trauma cardíaco. Foi assim, no pior caos, que eu ouvi Deus falando comigo, mesmo eu sendo lésbica.

Desde a minha infância eu sabia que eu era diferente de todas as minhas amiguinhas. Aos 10 anos a primeira paixão platônica foi por minha professora de redação. Aos 12, minha melhor amiga era também meu primeiro amor e primeira namoradinha, o que me levou a ser expulsa do colégio interno de freiras. Da adolescência para a juventude tive que conviver com o conflito, entre a autonegação e aceitação. Aos 18, fugi de casa e por três anos mantive um relacionamento com outra mulher.

Aos 21 anos, ao ter contato com o Evangelho, me foi dito que minha sexualidade me levaria ao inferno, que embora Deus me amasse, Ele não me aceitava como eu era. A partir desse momento foram longos anos na busca pela tal 'cura gay'. Eu me submeti a todos os 'rituais' que se fizessem necessários para que aquele demônio da homossexualidade saísse. Ou para a tal cura vir.

BBB 21: Gil já foi missionário mórmon e sempre diz que Deus nunca deixou de falar com ele pelo fato de ser gay - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
BBB 21: Gil já foi missionário mórmon e sempre diz que Deus nunca deixou de falar com ele pelo fato de ser gay
Imagem: Reprodução/Globoplay

E embora eu houvesse experimentado uma mudança no meu estereótipo, radical, e de verdade a desejasse, porque de maneira nenhuma queria ir para aquele lugar de tormento eterno, lutava dentro de mim com a certeza de que ainda não havia deixado de ser lésbica, mas sublimado, por medo do castigo.

O desejo por tal cura e libertação me levou a uma posição ofensiva e de autoafirmação, testemunhava pelo Brasil e por outros países no mundo como ex-lésbica, e embora lutasse dentro de mim ainda com a certeza de que não estava "curada" nem "liberta", usava a imagem de um casamento hétero como prova da tal transformação.

O casamento com um homem foi uma fuga emergencial e de desespero para mim, quando me vi nutrindo sentimentos proibidos por uma jovem da Igreja. O medo de voltar ao 'pecado do homossexualismo' e a certeza de que era a única coisa a fazer que me faltava, decidi casar.

Em seguida veio o nascimento do meu filho, e por mais que aparentemente tudo seguisse o seu curso, dentro de mim um desespero ainda maior se agigantava. Eu já havia me disposto a tudo, mas sabia que minha sexualidade continuava ali, latente. Estava intrínseco em mim, como a cor dos meus olhos, da minha pele, fazia parte da minha natureza.

O processo de sublimação da minha sexualidade suportou oito anos, até que em mais uma das minhas viagens missionárias, em Boston, nos Estados Unidos, conheci uma mulher, com que hoje estou casada e por quem eu me apaixonei. A evidência de que eu não vencera "o pecado" me levou a nutrir por Deus um terrível sentimento de rejeição, que durou quatro anos.

Nesses quatro anos, passei um deles em total revelia, culpando a Deus por eu ser como era, e sempre o questionando de porquê havia me feito nascer assim, já que tal condição me tornava culpada e condenada por Ele mesmo.

E assim reiniciou-se outro processo, agora ainda mais doloroso, uma série de justificativas se dava ao insucesso da minha primeira tentativa de libertação, e mais uma vez diante de pessoas que eram referências de cura e libertação de homossexuais, eu iniciei outra vez uma busca desesperadora pela "cura".

A verdade era que quanto mais eu era submetida a exorcismos, curas interiores e tudo quanto poderia ser a minha solução, mais eu percebia se agigantar em mim uma triste compreensão: a de que nunca iria mudar. Foi então que iniciei o processo da minha autoaceitação. Precisei me entender como alguém com uma orientação sexual homoafetiva e de que não havia nada que eu pudesse fazer para mudar isso, primeiro porque não era uma escolha, mas uma condição natural a minha existência, era uma parte de mim que definia a minha identidade.

As sequelas do processo de negação da minha orientação sexual, me causaram outros danos. Na guerra de conflitos dentro de mim a compensação veio em forma de prejuízos, me levando muitas vezes a agir de maneira a descaracterizar de fato minha essência, e sem perceber, era aí então que de fato eu me perdia. Não por ser lésbica, mas pelas escolhas que eu fazia em como eu viveria a minha sexualidade.

E foi assim, embora já aceitando quem era, mas ainda buscando a aceitação do Deus que eu tanto amava, que eu pude ouvi-Lo pela primeira vez. Enquanto estava naquele estado de coma, em face à morte, eu lidei como o mais belo dos paradoxos, eu encontrei a vida.

Sim, Deus falou comigo, mesmo eu sendo lésbica! Em coma eu vivi a experiência do amor divino. Ele me chamou de filha, não me chamou pelo meu nome, qualquer pessoa me chama pelo meu nome. Ou por pejorativos como sapatão, mulher-homem, "veada", e tantos outros. Mas Deus, não, meu Pai não! Ele me chamou de filha. E na visão que me deu durante o coma, Ele me fez uma pergunta: "Você quer vir comigo ou quer ficar?".

Eu sabia que Ele estava me dando o direito a escolher se eu voltaria para o meu corpo, ou se iria para o céu com Ele. Deus não só falou comigo, como me deu a certeza que há no céu um lugar para mim, sim para mim, uma lésbica. Bendito acidente! Que impacto transcendente me causou.

Aquele convite era mais do que eu poderia imaginar. A ânsia de ir foi enorme, mas na minha consciência, as duas pessoas mais importantes da minha vida precisavam de mim, o meu filho e a mulher que eu amava.

Então eu olhei na direção do meu Pai, e disse: eu quero ficar! A visão se dissipou e não sei quanto tempo depois do que eu havia experimentado meus olhos se abriram, eu acordei. Acordei do coma, acordei para o amor indubitável de Deus por mim, meus olhos se abriram para a Verdade da sua aceitação. Não descobri a religião, descobri a paternidade divina.

Deus não me foi apresentado por um sistema opressor, mas por Si mesmo. Meus sofismas foram soterrados pela avalanche da sua presença e minha vida. Com a aceitação do amor de Deus veio a cura do meu próprio preconceito, veio a restauração da minha identidade e uma inteireza se expandiu para todas as demais áreas da minha vida, me tornei alguém integra, inteira, total, completa e plena.

A força e a violenta busca com que eu ansiava encontrar a Deus no meio dos meus conflitos, só me afastava ainda mais Dele, porque me afastava ainda mais de mim. É impossível encontrar a Deus, sem encontrar-se antes consigo mesmo.

Sim, Deus fala com a bicha, com a lésbica, com o transgênero, com o binário, com o não binário e com todos os demais que nem ainda existem na sigla LGBTQI+.

Pecado? É não amar o outro, é julgar o outro, e só os orgulhosos julgam e condenam os seus semelhantes. Eu, todavia, escolhi a melhor parte, amar a todos, assim como fui amada por Ele.

* Lanna Holder é autora do livro "O Diário de uma Filha Pródiga" e pastora da igreja Cidade de Refúgio, dedicada a fiéis LGBTQI+