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OPINIÃO

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Ana Estrada luta pela eutánasia: vida é um direito, não um dever

A peruana Ana Estrada sofre de pólio progressiva e luta pelo direito da eutanásia  - Angela Ponce/AFP
A peruana Ana Estrada sofre de pólio progressiva e luta pelo direito da eutanásia Imagem: Angela Ponce/AFP
Luciana Dadalto

Colaboração para Universa

12/03/2021 04h00

Durante todo o dia de ontem, recebi de diversos amigos o depoimento que a psicóloga peruana Ana Estrada deu a Universa. No relato "Quero sentir beleza" ela conta sua luta para ter na Justiça o direito à eutanásia. Eu já conhecia a história dela, mas fiquei, mais uma vez, tocada. No seu perfil no twitter, Ana Estrada se identifica como "defensora e guardiã de sua liberdade". Portadora de uma doença autoimune, progressiva e degenerativa há mais de vinte anos, Ana é totalmente dependente de cuidados e luta para que o governo peruano reconheça que ela é a única dona de seu corpo e de suas escolhas. Na prática, essa luta significa que Ana deseja realizar eutanásia sem que os médicos que a auxiliarem sejam punidos.

A etimologia da palavra "eutanásia" é grega. Desde a Antiguidade, o termo "eutanásia" é utilizado para nomear uma "boa morte", um ato misericordioso de um terceiro - comumente um médico, com autorização legal para prescrição de fármacos - que, ao se compadecer do sofrimento de uma pessoa gravemente enferma, a auxilia a abreviar sua vida.

É na Idade Média, no esplendor do Cristianismo, quando a sociedade ocidental passa a reconhecer que a vida é uma dádiva divina, que a eutanásia adquire uma conotação negativa. Nesse contexto, se a vida é um presente que recebemos de um Criador, não cabe a nós recusá-lo, por isso, a eutanásia passa a ser criminalizada nos países ocidentais.

Mas não estamos mais na Idade Média. A Era Moderna é marcada pela separação entre Igreja e Estado e, portanto, a vida passa a ser tratada como um direito, regulamentado pela lei dos homens. Todavia, a lei é produto da sociedade e reflete os valores desta e, como grande parte dos países ocidentais é forjado pela cultura judaico-cristã, a eutanásia continua sendo proibida. Assim, a vida, que deveria ser um direito, passa a ser tratada como um dever.

Convido o leitor a refletir sobre o que significa estar vivo. Historicamente, associamos a vida a atividades das funções vitais: o coração está batendo, o cérebro está ativo, a pessoa está viva. Contudo, a perspectiva biográfica da vida nos mostra que viver é, também, uma ação íntima, subjetiva, absolutamente individual. Ao viver, escrevemos nossa biografia e ela é muito maior do que nossa biologia. É ela quem nos torna únicos.

O caso de Ana Estrada lembra-me o famoso caso de Ramon Sampedro, um espanhol que ficou tetraplégico aos 25 anos e, aos 52, pediu que o Poder Judiciário desse a ele o direito à eutanásia. Ramon estava biologicamente vivo, mas biograficamente morto. Por isso, ele escreveu um livro, o qual nomeou de "Cartas do Inferno", afinal, era no inferno - esse lugar horrível, para o qual ninguém deseja ir - que ele estava. O pedido de Ramon Sampedro foi negado, mas ele morreu por suicídio assistido, auxiliado por vários amigos, no dia 12 de janeiro de 1998, e seu caso foi parar nas telas de cinema, no premiado filme "Mar Adentro".

Suicídio assistido

Assim como Ana, Ramon queria eutanásia. Ou seja, ele queria que um médico administrasse uma dose letal de um fármaco, ocasionando a morte do corpo físico de forma indolor. Ao contrário de Ana, o pedido de Ramon não foi aceito pela Justiça. Então, cansado de viver no inferno, ele decidiu tirar sua própria vida, mas como era tetraplégico, precisava de ajuda e a encontrou em muitos amigos que o auxiliaram a beber uma dose letal de um fármaco comprado ilegalmente.

Ramon Sampedro fez um suicídio assistido, termo que, apesar de encontrar inúmeras críticas entre especialistas, é o mais usado ao redor do mundo para designar a abreviação da vida feita pelo próprio paciente, com o auxílio de terceiros, normalmente médicos, que prescrevem a dose letal.

No dia 29 de novembro de 2019 eu acompanhei na Suíça o suicídio assistido de um senhor australiano, a quem chamarei de José. José tinha 65 anos e tinha sido diagnosticado com Mal de Parkinson há treze. Durante esse período, ele realizou inúmeros tratamentos médicos, incluindo experimentais, mas há três anos sua saúde começara a se deteriorar e o suicídio assistido tornou-se uma opção para ele que "queria viver e não sobreviver".

Em 2019, na Austrália, o procedimento era legalizado apenas no estado de Victoria, e José precisaria firmar residência nesse estado pelo período mínimo de um ano para aproveitar-se da lei. A espera era impensável para ele.

Assim como dezenas de pessoas ao redor do mundo, José viajou à Suíça (onde a eutanásia é proibida, mas o suicídio assistido é regulamentado há mais de duas décadas) e lá, cercado por sua mulher e seu filho, em um quarto dentro de uma organização que auxilia pessoas gravemente doentes a abreviarem suas vidas, ele, antes de abrir o escalpo que liberaria a substância letal - que havia sido prescrita por um médico suíço - em suas veias, ao ser questionado se sabia o que aconteceria se ele abrisse o escalpo, afirmou "sim, eu vou morrer. E é exatamente o que quero. Isso não é mais vida".

Do mesmo modo que José, Ana Estrada poderia ter ido para a Suíça. Para isso, ela teria que passar por um longo procedimento burocrático, gastar cerca de dez mil francos suíços e morrer em um país diferente do seu, falando uma língua diferente da sua. A ideia passou por sua cabeça, conforme ela relata, mas desistiu. Como Ramon Sampedro, ela preferiu lutar por seu direito à liberdade em seu próprio país. E, como uma mulher que "precisa ter a certeza de morrer para poder viver" pois sabe que "esse inferno será eterno e que sua mente estará completamente lúcida para viver cada dor sozinha em uma cama", ela está lutando bravamente.

Pesquiso autonomia em fim de vida há mais de treze anos e estou convencida de que os cidadãos de um país só serão verdadeiramente livres quando a eutanásia e o suicídio assistido forem reconhecidos como um direito individual. Uma escolha pessoal que não admite julgamentos por outras pessoas. Afinal, como diz Caetano "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é".

*Luciana Dadalto, advogada e pesquisadora de temas relacionados à autonomia no fim de vida