"Quero sentir beleza"

A peruana Ana Estrada está prestes a ter na Justiça o direito à eutanásia. A Universa, ela fala sobre sua luta

Maria Angélica Oliveira Colaboração para Universa, em Lima Angela Ponce/AFP

Da cama onde vive há seis anos, a psicóloga e ativista peruana Ana Estrada, de 44 anos, está fazendo história. Em fevereiro, a Justiça do país aceitou o pedido dela para se submeter à eutanásia.

Reconhecida como um direito em cinco países (Canadá, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Colômbia), a eutanásia é a antecipação da morte de pacientes incuráveis, por meio do auxílio de outra pessoa, geralmente um médico, com aplicação de uma injeção letal. No Peru, assim como no Brasil, a eutanásia é proibida — aqui, quem colaborar com a prática pode ser indiciado por homicídio doloso.

Ana é portadora de polimiosite, uma doença autoimune, incurável e progressiva na qual o sistema imunológico ataca os músculos. Perdeu a maior parte dos movimentos: consegue mexer um pouco o pescoço e dois dedos, que usa para digitar os poemas e textos do blog onde conta sua história. Vive com um ventilador conectado a uma traqueostomia (um buraco aberto na traqueia) e consegue respirar sozinha e se sentar na cadeira de rodas por, no máximo, quatro horas por dia.

A ação, apresentada pela Defensoria Pública do Peru em janeiro de 2020, argumenta que o Código Penal do país viola o direito de Ana a uma morte digna. Os ministérios da Saúde e da Justiça e Direitos Humanos e o EsSalud (Seguro Social de
Saúde), que inicialmente se manifestaram contra o pedido, decidiram não recorrer. Eles deverão formar uma equipe médica para criar um protocolo a ser seguido e estar prontos para quando -- e se -- Ana decidir se submeter à eutanásia. A sentença, no entanto, não é definitiva e precisará ser aprovada pela Suprema Corte.

Enquanto isso, Ana Estrada busca apropriar-se de sua história para ressignificar sua vida. Em depoimento a Universa, realizado por vídeochamada, ela narra essa trajetória.

"Aos 20 anos, me dei conta de como a doença iria evoluir"

"Fui diagnosticada com polimiosite entre 12 e 14 anos. Como é uma doença rara, os médicos demoraram a fechar o diagnóstico. Eu notava algumas mudanças, tropeçava e caía muito. Mas era adolescente, não entendia nada e só queria aproveitar a vida.

Segui assim até os 20 anos, quando comecei a usar a cadeira de rodas. Foi um despertar: 'O que aconteceu comigo todo esse tempo?'. Comecei a pesquisar. Foram anos sofridos porque me dei conta de como a doença iria evoluir. Apesar de tudo, me formei em psicologia e trabalhei.

Amei minha profissão profundamente. Sendo psicóloga, era como se a vida me desse a oportunidade de já não ser eu quem era cuidada. Ali, estava no papel de cuidadora, que escutava e atendia o paciente

Nessa época, vivia em um apartamento com minha assistente. Tinha consultório em casa e era muito independente. A convivência com ela era de muita cumplicidade, viajamos e aproveitamos muito. E tive meu primeiro gato. Foi uma fase muito bonita.

Em 2015, aos 38 anos, tive um resfriado que gerou uma bronquite. Trabalhei até uma sexta-feira, 17 de julho. No sábado, meu irmão foi me visitar. Acordei e quis ir para a sala para recebê-lo, mas comecei a sufocar. Ele me carregou e fomos para o hospital mais próximo. E aí começou tudo.

Angela Ponce/AFP Angela Ponce/AFP

"Fiquei seis meses na UTI. Via a morte ao meu lado"

Fiquei seis meses na UTI. Nos primeiros 20 dias, estive intubada. Depois fizeram a traqueostomia [um procedimento cirúrgico em que um orifício é aberto na traqueia e um ventilador é conectado ali para o paciente respirar]. Foi a fase mais terrível que vivi, um trauma. Era uma dor insuportável de não poder falar, não poder mexer um centímetro do pé ou da mão se algo me incomodava.

Enquanto a maioria dos pacientes da UTI estava sedada, eu estava lúcida. Alguns iam morrendo, eu via a morte ao meu lado. As enfermeiras vinham a cada seis horas me mudar de posição. Eu tinha que aguentar. Tive lesões na pele, meu corpo sofreu terrivelmente.

Pelo ritmo de trabalho em UTI, a maioria dos profissionais age como se não te visse. Manipulavam meu corpo enquanto eu queria dizer em que posição gostaria de ficar, mas não me olhavam. Mas também encontrei pessoas que foram minha salvação.

Na primeira semana, veio uma técnica de enfermagem, Nancy. Ela me olhou, viu que eu estava chorando e perguntou o que estava acontecendo. Para mim foi: "Nossa, estão me resgatando!". Chorei ainda mais. Ela entendeu o que era e perguntou "seus lábios estão secos, quer água?". Pegou uma gaze molhada e começou a molhar minha boca [interrompe por alguns segundos] ... Me emociono ao lembrar disso. Ela me resgatou.

Quando cheguei em casa, minha casa já não era minha casa. Foi um luto ter perdido minha vida. Haviam me expropriado do meu próprio corpo e feito um corte na minha identidade.

Eu já não era a psicóloga, a mulher com deficiência que vivia livre. Era um pedaço de carne com intervenções médicas. Eu havia morrido.

O que voltou para casa não foi a mulher que saiu, foi outra coisa que tive que ir reconstruindo por pedacinhos. Foi duro, um processo de reconstrução de quase dois anos. Tive ansiedade e depressão.

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"Quando uma mulher se apropria do seu corpo e do seu desejo, nada a impede"

Quando comecei a me sentir melhor, quis me reapropriar do meu corpo. Comecei com as tatuagens. Até então, sempre havia algum médico que vinha e fazia alguma intervenção. Naquele momento, queria ser eu a dizer quem iria intervir no meu corpo e que fizesse isso com cores, com pássaros, com beleza

E assim foi. Sempre quando posso, viro meu braço e vejo flores, cores. Ali, há beleza, já não existe dor.

Depois, descobri mulheres com condições físicas diferentes que posavam para lindos ensaios nus como forma de serem donas de seus corpos. Pensei: Quero isso! Onde senti dor, onde senti que me invadiam, quero sentir beleza'

Conheci algumas fotógrafas e uma delas, Jéssica Alva, fez um foto livro com ensaios meus.

Essas imagens me ajudam a aceitar a ausência de intimidade comigo mesma e me permitem deixar que a nova Ana habite ali. Convivo com ela em uma nova pele que não posso tocar, mas que, paradoxalmente, me apaixona e me faz escrever sobre a morte para poder compreender, finalmente, o sentido de toda a minha vida.

Me transformei em uma mulher livre e sem vergonha. E aí não há caminho de volta. Quando uma mulher se apropria do seu corpo e do seu desejo, nada a impede.

Mas quando uma mulher com condições físicas limitadas e dois dispositivos em seu corpo [o ventilador para respiração e a sonda para alimentação] se exibe, pode gerar censura e rejeição porque, para a sociedade, uma mulher com deficiência é assexuada, sem desejo. Não é uma mulher, mas uma criança.

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"Não busco a morte. Luto por uma carta de liberdade"

A questão da eutanásia surgiu em agosto de 2016, quando fui internada pela segunda vez. 'É a última vez que vou passar por um hospital', pensei. Fiquei um mês e saí com essa ideia.

Comecei a pesquisar. Conversei com uma funcionária de uma instituição na Suíça [onde se permite o suicídio assistido] que me disse que quase 80% dos pacientes não chegam a decidir pelo procedimento, porque isso significa liberdade. E a liberdade te dá poder para tolerar o sofrimento.

Compreendi que era isso o que buscava. Não estava buscando a morte, estava lutando para que me dessem uma carta de liberdade para poder suportar a situação que me coube viver.

Depois, me dei conta de que aqui no Peru se realiza a eutanásia de forma clandestina. Cheguei a considerar, mas desisti porque era muito arriscado. Decidi que levaria a discussão a público [em janeiro de 2019, Ana criou um blog e, digitando com apenas dois dedos, começou a contar sua história].

Expliquei para minha família o que eu queria. Foi um encontro muito íntimo entre nós: meus pais, meu irmão e minha cunhada. Choramos muito, mas muito mais por tudo o que havíamos passado do que pelo que eu estava dizendo. Foram 30 anos de um longo caminho em busca de milhares de tratamentos.

No final, minha família me disse: 'Sempre estivemos com você, vamos te apoiar sempre'. Este é o amor que eles me demonstram. Deve ser o maior gesto de amor, um gesto de desprendimento total, aceitar a morte de uma pessoa querida.

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"Desejo que meu último momento seja amando a vida"

Quando soube que o Estado não iria recorrer da sentença, tive vontade de gritar, de pular. A primeira coisa que escrevi nas minhas redes sociais foi: 'Sou livre'.

Me dei conta de que não havia podido escrever isso nos últimos seis anos. Reconquistei meu direito à liberdade. Sou livre, sou livre! Tenho vontade de repetir muitas vezes. É uma sensação que explode no meu peito.

Para mim, uma morte digna seria poder escolher morrer quando já não suporte estar na cama conectada ao respirador 24 horas por dia. Agora ainda consigo tapar a traqueostomia e sentar na cadeira. Mas vai chegar uma hora em que não vou poder fazer isso. Aí vou avaliar.

Acredito que não vou conseguir resistir porque vai ser muito doloroso. Já sinto isso quando passo muito tempo na cama e meu corpo começa a doer. Posso tolerar agora, mas não sei se mais para frente. Acho que vai chegar o momento em que decidirei terminar com esse sofrimento em paz, com tranquilidade e calma.

Amo tanto a vida e a respeito tanto, que desejo que meu último momento continue assim, amando a vida. Não com dor e sofrimento. Lutei para não guardar a sensação de tristeza e rancor que sofri na UTI. Lutei pela minha vida."

Angela Ponce/AFP Angela Ponce/AFP

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