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"Como me tornei macumbeira: espero que minha história te emocione"

A atriz Jessica Ellen - Wendy Andrade
A atriz Jessica Ellen Imagem: Wendy Andrade
Jessica Ellen

Colaboração para Universa

24/01/2021 04h00

Das lembranças da minha infância, na minha mente e coração, tem uma caixinha especial. Dentro dela existe a seguinte frase :
"Tá dando doceeeeee!". E era uma correria sem fim.

Fecho os olhos e consigo ver, como uma cena de um filme, a molecada se esgueirando pela favela da Rocinha adentro, becos, vielas, terreiros de umbanda pra pegar o especial saquinho verde de Cosme e Damião.

A rua 3 pra mim era uma rua encantada, fazia parte do meu caminho e dos meus irmãos para irmos à escola. Antes das seis da manhã, o cheiro do defumador já estava em toda a rua...Era um senhor preto, alto, de cabelos brancos, sempre fumando cachimbo. Dia 12 de Outubro ele sempre dava bolo e doces.

Outra memória boa de dentro dessa caixinha são os passes dos caboclos, a reza das benzedeiras, as conversas e conselhos das pombagiras no terreiro de umbanda da tia Nicinha. E, por último, compartilho com vocês a lembrança que foi inspiração para dar vida ao meu novo álbum, "Macumbeira": as idas à casa do meu avô José.

De 15 em 15 dias, sempre aos domingos, minha mãe acordava a gente cedo, dava café e a gente saía para visitar meu avô. Eu tinha mais ou menos 9, 10 anos e ele já estava bem velhinho. Chegávamos, tomávamos benção e começavam as histórias... Meu avô foi um pedreiro reconhecido na Rocinha. Zé Preto. Construiu os prédios mais altos, fundou poços e ajudou a construir a escola Paula Brito. Minha mãe conta que ele era amigo do político Brizola, e que fez muito pela Rocinha...

Das lembranças todas, a que mais toca meu coração, é do enorme altar que tinha na casa dele com quase todas as entidades e santos da umbanda: Cabocla Jurema, caboclo Sete Flechas, caboclo Vira Mundo, Maria Conga, seu Cipriano, Boiadeiro, Mariazinha, Pedrinho, São Jorge, Nossa Senhora da Conceição e vários outros... Toda vez que eu chegava lá pedia pra ver o altar e insistia pra ele repetir os nomes de cada um.

Um dia, pela insistência recorrente, minha mãe me chamou a atenção : "deixa de ser curiosa, tudo pergunta. Tudo quer saber".
Ele rapidamente a corrigiu e disse : "deixa ela perguntar. Ela tem que saber... daqui a pouco eu morro, e como vai ser?". Ele tinha uma voz forte e rouca. Eu quase tremia de medo, mas a curiosidade era mais forte e superava o receio.

Meu avô danava a contar as histórias e eu, sentada, ouvia tudo com atenção. Vez ou outra ele se esforçava pra levantar da cama e colocar um vinil pra tocar na viola. O disco era "São Jorge Ogum", com os pontos mais lindos pra Ogum na linha de umbanda. Esse era o meu favorito.

Antes de o meu vô morrer, lembro de irmos lá, e ele chorar muito, pedindo perdão pra minha mãe e para que ela levasse o mesmo recado à minha vó e perdoasse ele também. Era criança e não entendi muito o motivo daquilo. Depois, com o passar do tempo, entendi que ele não tinha sido um bom marido pra minha vó. Tão pouco um bom pai pros meus tios e tias, mas, ao final da vida, conseguiu ser um bom avô pra mim e pros meus irmãos.

E eu agradeço! Agradeço por toda herança ancestral e espiritual. Por toda a proteção que sinto.

2020 foi um ano difícil pra todos nós e cada um viveu um processo.
Mais uma vez, aproveitei para me debruçar na minha história familiar e reverenciar os ancestrais. 2020. Ano que completou 16 anos de sua partida.

Mas, dentro meu coração, meu avó está vivo. Vivo, Assim como a arte que está sempre pulsando e em constante transformação.
E cá estou, a serviço da arte, da espiritualidade, comunicando o amor. Aproveito e digo: façam homenagens em vida! Não deixe pra depois o que pode ser feito hoje.

Meu álbum, "Macumbeira", é uma carta de uma neta para seu avô. É para ouvir com o ouvido atento e o coração aberto. Da mesma maneira que eu ouvia ao lado dele todas aqueles vinis, com canções lindas que embalaram minha infância e estarão sempre em minha memória. Dedico essa obra a memória do meu falecido avô José Dias, o Zé Preto.

*Jéssica Ellen é atriz, cantora e bailarina. Nascida e criada na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Ela está no elenco da novela "Amor de mãe" e lançou este ano o álbum "Macumbeira".