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Alucinógeno pode ser alternativa contra dependência de crack, aponta estudo

A iboga, um arbusto cujo principal alcaloide é a ibogaína, é usada secularmente em rituais xamânicos, principalmente no Gabão e em Camarões, na África Central - Reprodução
A iboga, um arbusto cujo principal alcaloide é a ibogaína, é usada secularmente em rituais xamânicos, principalmente no Gabão e em Camarões, na África Central Imagem: Reprodução

Carlos Minuano

Do UOL, em São Paulo

29/12/2014 06h00

Uma mulher afirma ter revivido todas as overdoses que teve na vida, um homem diz ter visualizado a própria morte, outras pessoas relatam reviver traumas de infância esquecidos. Esses são depoimentos de pacientes com problema de dependência química, que experimentaram ibogaína. A maioria descreve a experiência como assustadora, mas também transformadora. Entre os 75 pacientes com dependência de diferentes drogas, como cocaína, crack e álcool, 55% dos homens e 100% das mulheres ficaram livres do vício por um ano ou mais.

Conduzido pela Unifesp (Universidade Federal de S. Paulo), o estudo inédito fez uso da ibogaína, substância alucinógena, extraída de uma planta africana. A pesquisa chegou a ser noticiada pela Royal Pharmaceutical Society, do Reino Unido e publicada pelo britânico The Journal of Psychopharmacology. Entre 2005 e 2013, os pesquisadores administraram o cloridrato de ibogaína, importado do Canadá, e ministrado em cápsulas. No total, 62% permaneceram abstinentes. “É um resultado extraordinário neste campo”, diz Eduardo Schenberg, doutor em Neurociências (USP), que participou do estudo, juntamente com o psiquiatra Dartiu Xavier. Segundo ele, a maioria dos tratamentos convencionais não chega a 30% de sucesso. “Alguns ficam abaixo dos 10%”, diz.

Dados mostraram que 72% dos pacientes eram "poliusuários", ou seja, faziam uso de álcool, cigarros, maconha, cocaína e crack. “Este é um dos pontos mais inovadores, pois revela eficiência e segurança do uso clínico, médico e hospitalar da ibogaína no tratamento de usuários abusivos destas substâncias”, comenta Schemberg.

Parte dos pacientes tomaram ibogaína há mais de dois anos, outros há poucos meses. De acordo com o neurocientista, 25% dos pacientes tomaram ibogaína apenas uma vez, 44% tomaram duas vezes, 19% tomaram 3 vezes e uma parcela muito pequena tomou mais de três vezes.

Os intervalos entre as sessões foram, sempre, de ao menos um mês, sendo frequentemente mais longos que isso. “Dez pacientes procuraram, depois da ibogaína, outros tratamentos psicológicos”, afirma Schemberg.

Depoimento

Um dos pacientes que participou da pesquisa da Unifesp é Felipe Cruz, 31. Usuário de crack desde os 17 anos, ele continuou consumindo a droga até a idade de 25. Durante esse tempo foi internado em clínicas e comunidades terapêuticas 19 vezes. “Não conseguia vencer a fissura do crack”, diz. “Às vezes, eu ficava duas ou três semanas sem usar, mas logo recaía novamente”.

Há seis anos, Felipe usou ibogaína pela primeira vez. “A experiência foi bem intensa”, diz. “Tive visões da minha infância que eu havia esquecido, momentos marcantes da minha vida e até coisas que nunca aconteceram. A visão que mais me impactou foi da minha mãe chorando ao lado do meu caixão”.

Segundo ele, depois de algumas horas da dose, o efeito foi ficando mais fraco. “É quando começa uma fase importante de perguntas e respostas em que vários questionamentos vêm à tona. É quando a pessoa se pergunta: o que estou fazendo da minha vida?”. Hoje, ele coordena um trabalho com dependentes químicos, adolescentes e crianças em uma comunidade terapêutica, no interior de São Paulo.

Clínicas para dependentes

Embora o interesse em investigar os efeitos da ibogaína existisse desde o início da década de 90, o psiquiatra Dartiu Xavier, principal autor do estudo, conta que tomou a decisão ao observar o crescimento no Brasil o uso da substância em tratamentos para dependência em clínicas brasileiras. “Soube de muitas pessoas que estavam utilizando sem critérios científicos, não sabemos dos riscos desse uso”, afirma.

Dezenas de clínicas oferecem o tratamento que, geralmente, dura entre três e sete dias, e pode custar de R$ 3,5 mil a R$ 8 mil. Uma das clínicas ouvidas pela reportagem do UOL, localizada no interior de São Paulo, afirma usar o medicamento importado da África.

Lá, quem aplica a substância é uma dependente química, que se diz curada com a ibogaína. “Após dez internações conheci a ibogaína”, diz Camila Patah. “Fiquei impressionada por não sentir mais vontade de usar e quis trabalhar com isso”. Ela conta que não usa drogas há dois anos e meio. E há seis meses aplica a ibogaína.

Ela garante que é feita um triagem antes do paciente passar pelo tratamento. “Não podem prescrever para pessoas que têm quadro de esquizofrenia e é preciso fazer um eletrocardiograma”, afirma. Segundo ela, 16 pessoas já passaram pelo tratamento com ela.

O que é

Apesar do uso na recuperação de dependentes químicos, a iboga, arbusto conhecido por botânicos como Tabernanthe iboga, cujo principal alcaloide é a ibogaína, é usada secularmente em rituais xamânicos, principalmente no Gabão e em Camarões, na África Central. A planta pertence à categoria dos alucinógenos clássicos, entre eles, o peiote, a ayahuasca e o LSD.

Proibida

No Brasil, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a ibogaína não é proibida nem consta na lista de substâncias controladas, e pode ser importada para uso pessoal. Entretanto, a agência informou por meio de sua assessoria que, como até o momento não há medicamento registrado no país, o uso terapêutico comercial é considerado clandestino e ilegal.

Os pesquisadores são otimistas com o potencial terapêutico da planta africana, mas advertem que os estudos ainda não são conclusivos sobre a extensão dos seus efeitos, e que o uso da ibogaína deve ser feito com supervisão clínica rigorosa. Há registros de mortes no tratamento não-controlado de dependentes com ibogaína na Holanda, França e Suíça. Nos casos estudados no Brasil não foi observado nenhum caso de efeito colateral grave, nem de mortes. Para Eduardo Schenberg, doutor em Neurociências (USP), isso corrobora a importância do tratamento não ser ilegal.

Segundo o pesquisador, a proibição gera más práticas e riscos aos pacientes. “É fundamental que haja apoio médico profissional em ambiente hospitalar, com substância de boa procedência, dosagem conhecida e bem determinada e triagem adequada dos pacientes”, afirma.

Como em qualquer outra prática médica, há contra indicações no uso da ibogaína. A principal é para pacientes com problemas cardíacos. “O eletrocardiograma é um exame que deve ser incluído na triagem de qualquer paciente antes do uso da ibogaína”, afirma o médico.

Schemberg diz que o Brasil pode assumir um papel de liderança no campo das pesquisas de psicodélicos. “O Brasil encontra-se em situação favorável para se tornar líder nesta linha pioneira que pode ajudar muito num problema de grande dimensão”. Ele destaca que atualmente não há tratamento farmacológico para dependência de drogas, em especial para os estimulantes como cocaína e crack. “A ibogaína é uma via que deve ser explorada”, diz. O especialista, que reside em Londres, planeja realizar um ensaio clínico com a substância nos próximos anos.