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Com chegada da internet, indígena vira influencer e muda vida na aldeia

Cunhaporanga, apelido da influenciadora indígena Maira Gomes ou Jugoa - Marcella Duarte/UOL
Cunhaporanga, apelido da influenciadora indígena Maira Gomes ou Jugoa Imagem: Marcella Duarte/UOL

Marcella Duarte

De Tilt, em São Paulo

12/07/2023 04h00Atualizada em 12/07/2023 17h27

Moradora de uma pequena comunidade indígena a 35 km de Manaus (AM), acessível apenas por barco, em uma viagem de mais de uma hora pelo rio Negro, a jovem Maira Gomes —ou Jügoa (se pronuncia "rrîgoá" na língua de sua etnia tatuyo)— ainda se lembra de quando precisava escalar árvores para achar algum sinal de celular.

Depois de a internet chegar à sua aldeia, ela viu a vida mudar. Nas redes sociais, virou Cunhaporanga ("moça bonita", em guarani), conquistou fãs, fez uma participação em filme da Netflix, conheceu a cantora norte-americana Lana Del Rey e até arranjou um namorado carioca. De quebra, foi chamada de "estrela" por jornais americanos.

A jovem viralizou nas redes sociais ao mostrar cenas da vida de sua família. Hoje acumula 6,7 milhões de seguidores no TikTok, 1 milhão no Kwai e 505 mil no Instagram.

Da chegada da internet ao 'vocês comem inseto?'

Em 2019, o cacique Piño, pai de Cunhaporanga, presenciou uma cena curiosa: a escola que atende a comunidade recebia uma antena diferente. Era a banda larga via satélite chegando.

"Meu pai descobriu o que era e perguntou para o técnico como fazia para instalar em outros lugares", conta ela a Tilt. Ele acionou a HughesNet, fornecedora da internet, e contratou um plano para sua casa. A ideia era ajudar crianças e jovens com os estudos.

Não tínhamos condições de usar internet. A maneira que a gente encontrava para achar sinal [de celular] era subir uma ladeira ou escalando árvores. Mas durava segundos. Cunhaporanga

Com a pandemia, a conexão foi crucial, porque as aulas passaram a ser remotas, e a casa do cacique virou ponto de encontro dos jovens. "A gente descobriu as redes sociais, criamos perfis em todas elas", lembra a jovem.

O primeiro vídeo a viralizar no TikTok, com milhões de curtidas em poucas horas, foi uma resposta a um comentário: "É verdade que vocês comem inseto?".

"Claro que comemos! Quer ver?", respondeu Cunhaporanga. E na sequência mordeu uma grande larva viva, chamada de mochiva e coletada de troncos de palmeiras. Descartou só a cabeça antes de encher a boca farinha de mandioca. Terminou garantindo que tem gosto de coco.

Postei para mostrar nosso costume. Jamais imaginava que atingiria um público tão alto. Fico muito feliz de saber que, por meio dos meus vídeos, as pessoas conhecem a comunidade. Cunhaporanga

Famosos, mas sem grana

A comunidade abriga cerca de 40 pessoas, de diferentes etnias. Na margem esquerda do rio Negro, a vida gira em torno do curso d'água: pesca, agricultura, cozinha, banho.

Além das atividades para subsistência, uma das fontes de renda é o etnoturismo. Pessoas vão ao local para comprar artesanato, como zarabatanas, arco e flecha, flautas e bijuterias de penas e sementes, e para ter experiências, desde participar de rituais de música e dança a experimentar comidas típicas e até passar alguns dias vivendo como os nativos.

Com a pandemia, o turismo foi interrompido, e o cacique cogitou até cancelar a internet. Estavam famosos, mas sem dinheiro. Com o passar dos meses, porém, as redes sociais foram as grandes aliadas para retomar as atividades.

"Antes, só os guias conheciam a comunidade e levavam turistas. Com a divulgação da nossa vida na internet, aumentou muito a procura por gente querendo visitar ou comprar artesanato", afirma Cunhaporanga.

A possibilidade de conexão não tomou o lugar dos rituais. "Ainda há momentos de interagir e contar histórias, e o tempo para usar a internet é controlado. Até os mais velhos usam celular para trabalhar, divulgar trilhas e falar com a família que mora longe", garante.

Deu tão certo que hoje há mais um ponto de Wi-Fi, pois seu tio também assinou um plano de internet via satélite.

Netflix, namorado, Lana Del Rey e o sonho da aldeia

A internet também fez Cunhaporanga ampliar o seu mundo. Em setembro de 2022, ela estava de passagem pelo Rio para participar das gravações do filme "Ricos de Amor 2", da Netflix. O longa também foi rodado na comunidade dela.

Durante a viagem, um de seus seguidores, o estudante de educação física Henrique Gil, mandou uma mensagem. Eles se encontraram e viraram a madrugada conversando na praia do Leme. Ela foi embora naquela manhã, mas o papo seguiu virtualmente. Um mês depois, voltou ao Rio, e os dois engataram um namoro.

Em fevereiro deste ano, foi a vez de Gil conhecer a terra natal da namorada. "Ele foi super bem recebido, participou dos rituais, comeu larvas, formigas, rã, experimentou nossa vida na natureza. E adorou tudo", descreve a jovem. Não sem dor.

O namorado recebeu 13 chicotadas do sogro, o cacique Pinõ, como prova de coragem que marca a passagem para a vida adulta. Agora, ele quer morar de vez na comunidade.

@henrique.g00 Muitos já perguntam quais os testes que fiz para namorar a @J?GOA !!! A chicotada foi um dos testes que eu passei. #CapCut #ritual #chicotada #comunidadetatuyo #fy #semprecreators #tiktok #viral #tiktokbrasil #comunidadeindígena ? som original - Henrique

A passagem de Gil pela aldeia coincidiu com outra visita, a da cantora Lana Del Rey, no Brasil para o festival Mita. "Eu nem sabia quem era Lana Del Rey, mas já tinha ouvido a música dela", brinca a influenciadora.

Ela conta que um guia chegou dizendo que uma famosa queria conhecer a cultura deles e precisava de dois seguranças da comunidade. Toparam a missão Gil e Pikó, irmão de Cunhaporanga e também influenciador, com mais de 1 milhão de seguidores no TikTok. Na visita, a cantora participou do ritual, comprou artesanato, aprendeu a usar arco e flecha e, relata a jovem, "até cantou um pouquinho."

A vida de influenciadora também a fez trabalhar na divulgação de marcas como Mercado Livre e Natura e aparecer na TV Globo e no SBT. Com isso, realizou um sonho da comunidade: construir um poço artesiano para facilitar o acesso a água limpa.

Sem desconectar das raízes tatuyo

Com milhões de seguidores, a jovem passou a receber comentários e perguntas sobre a vida na aldeia. "Recebo muita coisa em inglês e até de parentes distantes, de outras comunidades, mandando mensagens dizendo que a gente os inspirou a fazer o mesmo", conta.

Os "haters", porém, também chegaram:

Há comentários desnecessários e até ameaças para que eu pare de postar meus vídeos. Até o fato de comer insetos foi criticado, como se pudesse iniciar pandemias como a de covid-19. Cunhaporanga

Além disso, ela enfrenta a sexualização e os estereótipos atribuídos aos indígenas:

Pedem para mostrar meu corpo, dizem que somos preguiçosos. Eu mostro justamente que a gente trabalha bastante. Pode não ser em uma empresa numa grande cidade, mas somos agricultores, fazemos farinha, artesanato, turismo. Cunhaporanga

Como qualquer jovem, Cunhaporanga também posta dancinhas, participa de trends, dubla vídeos e usa filtros. Tudo a partir de seu iPhone. Inicialmente, os mais velhos da aldeia temeram que a exposição fizesse os jovens se desconectaram das raízes tatuyo. Até seu pai, o grande incentivador da conectividade, a aconselhou a tomar cuidado.

Lidamos bem com isso, nosso costume é respeitar todo mundo e responder educadamente. Meus pais apoiam que eu tenha laços com outras pessoas. Sabem que nunca vou abandonar minha cultura. Acabei virando uma influencer e meu grande objetivo é mantê-la viva. Quero também que outros povos divulguem sua história para o mundo. Cunhaporanga