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Cansado e dorminhoco, 1º satélite brasileiro bate recorde ao superar a Nasa

SCD-1, o primeiro satélite brasileiro, acaba de bater um recorde - Inpe
SCD-1, o primeiro satélite brasileiro, acaba de bater um recorde Imagem: Inpe

Marcella Duarte

De Tilt, em São Paulo

24/06/2023 04h00Atualizada em 26/06/2023 15h14

A moeda era o cruzeiro real, Itamar Franco ocupava a presidência da República, a seleção de futebol ainda não tinha conquistado o tetracampeonato mundial e a internet só estrearia por aqui dali a dois anos. Quando foi lançado, em fevereiro de 1993, o SCD-1 (Satélite de Coleta de Dados 1) marcava época por ser o primeiro desenvolvido, construído e operado pelo Brasil.

Após 30 anos, 4 meses e 4 dias, no último sábado (17), ele bateu um recorde: é o equipamento enviado ao espaço para observação da Terra que está há mais tempo em operação na órbita do planeta. Para fazer isso, superou duas barreiras.

Primeiro, deixou para trás as agências espaciais norte-americana (Nasa) e japonesa (Jaxa), que projetaram o satélite Geotail, lançado em 24 de julho de 1992 e desativado em 28 de novembro de 2022, que era o recordista anterior.

Mais que isso, também ultrapassou a própria expectativa de vida em mais de 30 vezes, visto que foi projetado para durar apenas um ano.

Satélites pequenos mais modernos, em geral, param de funcionar após uns cinco anos. Depois, permanecem em órbita como lixo espacial por no máximo 25, até serem arrastados em direção à Terra para uma morte flamejante em nossa atmosfera. Até isso o SCD-1 já superou.

Responsável pelo projeto, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) classifica o satélite como "um tributo à competência da engenharia espacial brasileira".

"O lançamento e consequente sucesso do SCD-1 representou uma grande conquista para o Inpe e para o Brasil, cujo objetivo era a autonomia de acesso ao espaço e o desenvolvimento de satélites em território nacional. Este recorde realça a robustez do projeto e a elevada qualidade da fabricação, da integração e dos testes realizados"
Sebastião Varotto, engenheiro do Inpe

Hoje, porém, ofuscado por novas tecnologias e pelo sucateamento da ciência brasileira, este velhinho vive em um limbo. Muitos lembram dele com nostalgia, mas é até difícil conseguir informações detalhadas sobre seu papel atual.

O SCD-1 já percorreu mais de 7 bilhões de quilômetros, girando em torno do planeta. Daria quase para ir a Marte e voltar duas vezes.

José Israel Vargas, ministro de Ciência e Tecnologia na época, visita o SCD-1 - Inpe - Inpe
José Israel Vargas, ministro de Ciência e Tecnologia na época, visita o SCD-1
Imagem: Inpe

Vigia espacial do clima, matas e rios brasileiros

Quando o SCD-1 foi lançado, os modelos de previsão do tempo ofereciam apenas 50% de acerto no Brasil.

Mas isso eu poderia fazer sem um computador. Era só jogar uma moeda. Com o SCD, chegamos a 80% de precisão, entre os melhores do mundo
Sebastião Varotto, engenheiro do Inpe

Para isso, o satélite coleta do espaço dados ambientais e meteorológicos de estações de monitoramento espalhadas pelo território brasileiro e os transmite a centros de processamento, em Cuiabá (MT) e em Natal (RN). Essas PCDs (Plataformas de Coleta de Dados Ambientais) são equipadas com instrumentos para levantar informações como:

  • nível de água em rios e represas
  • qualidade da água
  • precipitação pluviométrica
  • pressão atmosférica
  • intensidade da radiação solar
  • temperatura do ar

Diante de novos modelos e supercomputadores, estes dados deixaram de ser tão relevantes. "Mas naquele tempo, com capacidade computacional limitada e sem redes de celular, eles foram essenciais para a meteorologia e a previsão climática", completa Varotto.

Além disso, a rede de PCDs diminuiu. Se um dia chegou a contar com mais de 700 estações no Brasil e em países de fronteira, hoje tem apenas 127, após muitas quebrarem ou serem abandonadas. As informações levantadas pelo SCD-1 abastecem o Sinda (Sistema Integrado de Dados Ambientais), que permite monitorar bacias hidrográficas, fazer planejamento agrícola e manejar desastres naturais, além de previsão do tempo e clima.

Desenvolvimento do SCD-1 - Inpe - Inpe
Desenvolvimento do SCD-1
Imagem: Inpe

É acessado por 80 empresas e instituições, entre elas:

  • as agências ADA (Desenvolvimento da Amazônia) e Aneel (Nacional de Energia Elétrica);
  • as empresas Alcoa (indústria de alumínio), Eletronorte, Embraer, Embrapa e Sabesp;
  • as universidades Furg (federal do Rio Grande), Unicamp (estadual de Campinas) e Unifei (federal de Itajubá);
  • as usinas hidrelétricas de Cachoeira Dourada (MG) e de Corumbá IV (GO)
  • Cptec (Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos)
  • Defesa Civil
  • Fiocruz
  • Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)
  • Marinha do Brasil
  • Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia)

Um Fusca espacial, dorminhoco e cansado

Com cerca de 115 kg, o SCD-1 tem formato de um prisma octogonal, com 1 m de largura e 1,45 m de altura. Seus oito lados e a parte de cima são cobertos por células solares.

Posicionado a 750 km de altitude, ele viaja a 27 mil km por hora, o que o faz levar 1 hora e 40 minutos para dar uma volta completa na Terra. Assim, passa 16 vezes por dia sobre o território brasileiro para cumprir seu trabalho.

Isso se não estiver dormindo. Com tantos anos de uso, suas baterias já não conseguem armazenar energia. Mas, graças à maneira como foi projetado, isso não foi fatal: desde 2010, ele funciona só quando seus painéis são iluminados pelo Sol. Assim, o SCD-1 fica ligado cerca de 60% do tempo.

Ele também está cansado. Desde que entrou em órbita, sua velocidade de rotação (os giros em torno de si mesmo) diminuiu muito, dos iniciais 120 rpm (rotações por minuto) para menos de 10 rpm.

Isso afeta a estabilidade da órbita e o ângulo em relação à superfície do planeta, o que superaquece seus componentes, que hoje operam acima do limite. Os técnicos do Inpe ainda conseguem fazer algumas manobras para controlar a atitude, mas com cada vez menos eficácia.

A concepção dele foi como a de um Fusca: simples e robusto. Se não tiver bateria, é só empurrar que pega. Um satélite não tem chave. É lançado ligado e fica assim pra sempre. A maioria deles acaba por questão energética, como um celular velho. Mas este tem um jeito de continuar funcionando, mesmo que parcialmente, só com a tensão gerada nos painéis solares".
Varotto

Um dos segredos para a longevidade do SCD-1 é uma criação da equipe do engenheiro: uma bobina magnética, que mantém seu eixo de rotação na orientação correta. Desenvolvida pelo Inpe, é um carretel de alumínio de um metro de diâmetro, com um fio de cobre esmaltado bem fininho, que precisava dar 320 voltas. E foi a Pirelli que forneceu esse fio, originalmente usado para fazer bobinas de tubos de televisão. "Eles nem cobraram, fizeram uma tiragem especial para gente, com o padrão de qualidade necessário", lembra.

SCD-1 últimos preparativos no LIT - Inpe - Inpe
SCD-1 últimos preparativos no LIT
Imagem: Inpe

Pioneiro do sonho espacial brasileiro

Primeiro da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), elaborada pelo governo em 1979, o SCD-1 seria a concretização do plano de fabricar nacionalmente todas as etapas de um lançamento: o satélite, o foguete, a estrutura no solo e a operação em órbita.

"Como satélites de alta complexidade seriam um passo muito grande, começamos com um mais simples. Na década de 80, recém-formado, fiquei muito contente por trabalhar com o que gostava. Fiz minha tese de mestrado sobre satélites. Sou um dos últimos remanescentes daquela época", lembra Varotto, contratado especialmente para a missão.

O Inpe ficou a cargo de desenvolver os satélites. Em parceria com a indústria nacional, o instituto produziu as placas de circuito impresso, as células solares, as bobinas e tudo mais que foi necessário para montar o satélite. "Pareciam verdadeiras salas de cirurgia, contaminação zero", lembra Varotto.

Para isso, investiu nas modernas instalações do LIT (Laboratório de Integração e Testes), em São José dos Campos, até hoje referência em tecnologia espacial no hemisfério Sul.

SCD-1 acoplado ao foguete - OSC - OSC
SCD-1 sendo acoplado ao foguete
Imagem: OSC

Uma nova esperança

O plano era que o lançamento do SCD-1 acontecesse da base de Alcântara, no Maranhão. Mas o foguete brasileiro VLS-1 (Veículo Lançador de Satélites) atrasou — só foi decolar em 1997, quando explodiu junto do SCD-2A.

Por isso, o SCD-1 foi lançado do Kennedy Space Center, da Nasa, na Flórida, com o foguete Pegasus, da Orbital Sciences Corporation.

Ele usou um curioso sistema para sair do chão: acoplado embaixo da asa de um avião militar B-52. A ogiva (bico do foguete) recebeu o nome de Brigadeiro Montenegro, em homenagem ao oficial cearense que criou o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica).

SCD-1 na ogiva Brigadeiro Montenegro do foguete Pegasus - OSC - OSC
SCD-1 na ogiva Brigadeiro Montenegro do foguete Pegasus
Imagem: OSC

"A missão MECB acabou sendo parcialmente completa, porque o foguete até hoje não temos. Mas do ponto de vista das aplicações foi um grande sucesso, os satélites funcionaram excepcionalmente bem e com uma vida muito longa", acredita Varotto.

Em outubro de 1998, o SCD-2 foi lançado da mesma maneira. Também com expectativa de vida de um ano, continua ativo, e pode um dia desbancar o recorde de seu irmão mais velho.

"Creio que em não muito tempo o SCD-1 ficará inoperante, pois está girando cada vez mais devagar. É provável que o SCD-2 seja ainda mais longevo e o ultrapasse, pois adicionamos bobinas para controle da velocidade da rotação"
Varotto

SCD-1 e Pegasus, transportados por um avião B-52 da Força Aérea - Nasa - Nasa
SCD-1 e Pegasus, transportados por um avião B-52 da Força Aérea
Imagem: Nasa