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'Heresia e desrespeito': teólogos criticam Bíblia reescrita pelo ChatGPT

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Thiago Varella

Colaboração com Tilt

03/06/2023 04h00Atualizada em 05/06/2023 16h36

A Bíblia é o livro sagrado dos cristãos. É um compilado de livros e textos religiosos escritos ao longo de séculos e considerados canônicos por aqueles que creem em Jesus Cristo. Justamente por isso, segundo especialistas ouvidos por Tilt, esses livros não devem ser mudados. Muito menos reescritos por máquinas ou por uma inteligência artificial, como ocorreu há uns dias.

A organização Peta (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais, em português) usou o ChatGPT para modificar o Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, da Torá e que possui personagens sagrados para o Islã. A ideia do grupo foi a de recriar a história por um ponto de vista vegano.

Para Gerson Leite de Moraes, doutor em Ciências de Religião e professor do Mackenzie, não existe a menor possibilidade de um texto bíblico reescrito pelo ChatGPT ser bem recebido pela comunidade cristã, independentemente da denominação, sejam católicos, evangélicos ou ortodoxos.

"O cristianismo, a exemplo de outras religiões, é uma religião do livro. E esse livro adquiriu um grau de canonicidade, um grau de sacralidade em que aquilo que foi, pela história, consagrado como canônico não pode ser mudado", explicou.

Por isso, segundo Moraes, uma inteligência artificial pode até reescrever a Bíblia inteira, mas o patrimônio cultural dos cristãos não será alterado.

"Qualquer coisa que venha a ser acrescentada por uma inteligência artificial será tomada automaticamente como uma heresia", afirmou.

O teólogo e pastor Ranieri Costa, mestre em Linguagem, concorda com esse ponto de vista. Segundo ele, a Bíblia não é um simples livro para os cristãos.

As pessoas que acreditam e têm contato com a Bíblia se relacionam com os textos ali contidos com a perspectiva de que estão se relacionando com o próprio Deus, com a perspectiva de que aqueles textos trazem a revelação de quem é Deus é e de como Deus age no mundo em cada época da história Ranieri Costa, teólogo e pastor

Justamente por isso, para essas pessoas que expressam a sua fé no Deus bíblico, em Jesus, tudo que está contido no livro sagrado é verdade.

Traz um risco muito grande você descaracterizar algo que tem um valor tão profundo, tão intenso para a vida religiosa de boa parte da humanidade apenas para satisfazer uma questão ideológica. Apesar da importância do tema com relação aos animais [no caso da mudança feita pela Peta], nós sabemos que é uma questão ideológica e de mercado. Usar isso para mudar trechos da Bíblia e tirar todos eles de contexto é um desrespeito com a fé alheia Ranieri Costa, teólogo e pastor

E as diferentes interpretações dos textos da Bíblia?

Apesar de sagrada para os cristãos, a Bíblia pode sim ser interpretada de diferentes maneiras. Aliás, as divergências quanto aos textos são inúmeras.

Sobre isso, Moraes entende que é comum ter divergências de interpretação, de tradução e até de entendimento. Contudo, algo novo, reescrito, mesmo que tenha alguma familiaridade, será visto como uma grande heresia que não faz parte da velha tradição cristã.

O teólogo católico Felipe Zangari, mestre em Ciências da Religião, concorda que o texto bíblico é passível de releituras, mas tudo com o devido cuidado.

"Como a palavra de Deus revelada, o texto bíblico merece a devida reverência histórica e teológica, ainda que os modos de ler e interpretar tenham acompanhado a evolução de ciências como a arqueologia e a hermenêutica", explicou.

Para Ranieri Costa, as traduções são feitas baseadas nos textos originais ou nos fragmentos que se tem dos textos originais. E a partir desse material se faz uma tradução mais adequada para o entendimento da sociedade em cada tempo.

"As traduções mais atualizadas trazem palavras mais ligadas ao nosso contexto hoje, de gramática, de vocabulário. Mas não fogem do significado original do texto", disse.

Segundo ele, usar o ChatGPT para reescrever a Bíblia é distorcer o texto e descaracterizar a compreensão de sagrado que os indivíduos têm para satisfazer um desejo pessoal de algo que não vai mudar.