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Cientistas usam solo do semiárido para descobrir como plantar em Marte

Pesquisadores desenvolveram no pico do Cabugi estufas para o cultivo de vegetais. A região é rica em basalto, constituinte primário do solo marciano  - Julio Rezende/Divulgação
Pesquisadores desenvolveram no pico do Cabugi estufas para o cultivo de vegetais. A região é rica em basalto, constituinte primário do solo marciano Imagem: Julio Rezende/Divulgação

Josué Seixas

Colaboração para Tilt, em Maceió

27/08/2020 04h00

Sem tempo, irmão

  • Habitat criado no semiárido do Rio Grande do Norte simula condições de plantio em Marte
  • Local fica no pico do Cabugi, local rico em basalto, elemento primário do solo marciano
  • Habitat Marte já recebeu R$ 1,3 milhão de investimentos e teve 47 missões simuladas
  • Simulações permite que cientistas se preparem para chegar a Marte um dia

Ainda que seja impossível reproduzir fielmente na Terra como seria viver em Marte, uma iniciativa está usando desde 2017 uma região semiárida do Rio Grande do Norte para simular a produção de alimentos e de energia no planeta vermelho. O objetivo é desenvolver um sistema autossustentável para astronautas produzirem sua própria comida em futuras missões.

O projeto Habitat Marte faz parte dos esforços da comunidade científica para viabilizar a colonização do planeta, que parece estar cada vez mais perto de se tornar uma realidade. Só em julho deste ano, três países lançaram sondas para lá, sendo a missão da Nasa considerada a mais ambiciosa de todas, com direito até a helicóptero sobrevoando o céu marciano.

Para simular como seria plantar naquele planeta, os pesquisadores do Habitat Marte desenvolveram no pico do Cabugi —um vulcão extinto em Angicos (RN)— estufas que recriam as condições favoráveis para cultivar vegetais em sistema fechado, com controle de temperatura e umidade. O local foi escolhido por ser rico em basalto, um elemento primário do solo marciano.

Essas estufas também têm sistemas de aquaponia, onde é possível cultivar plantas sem precisar usar o solo para isso —já que as raízes dos vegetais ficam submersas na água— e peixes.

"Nesse sistema, há a produção de tilápias e de alimentos de raiz longa, como feijão, cebola, tomate e alface", explica Julio Rezende, professor da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) que coordena o projeto.

Já existem pesquisas com vegetais e até com peixes na ISS (Estação Espacial Internacional, sigla em inglês). Em termos de gravidade, as condições em Marte seriam ainda mais favoráveis para o cultivo de peixes se comparadas com as da estação.

"Pode ser também viável [a construção de] sistemas de hidroponia, para geração de substâncias nutritivas para o desenvolvimento das plantas. Pesquisas sobre o tema são importantes para a futura vida em Marte", acrescenta.

Para ele, o Habitat Marte vai além da exploração do planeta vizinho: poderá ajudar a resolver problemas do próprio semiárido brasileiro, onde também há escassez de alimentos e água. Para a criação e manutenção do local, Rezende já tirou do próprio bolso cerca de R$ 1,3 milhão.

Nas estufas há produção de alimentos de raiz longa, como feijão, cebola, tomate e alface - Julio Rezende/Divulgação - Julio Rezende/Divulgação
Nas estufas há produção de alimentos de raiz longa, como feijão, cebola, tomate e alface
Imagem: Julio Rezende/Divulgação

E se tiver uma tempestade de areia?

A equipe realiza semanalmente simulações de como seria cultivar em solo marciano, enfrentando tempestades de areia e longos períodos de isolamento. Cada participante apresenta as suas descobertas durante o processo. Essas simulações são chamadas missões e servem para desenvolver protocolos que podem ser realizados em futuras estações a serem instaladas em Marte.

Desde que o projeto foi criado, mais de 47 missões —somando mais de 150 dias de simulações— já foram realizadas. Ao todo, 200 pessoas de 22 países já participaram delas, seja presencial ou virtualmente —essa última modalidade ganhou força com a pandemia da covid-19.

Mas Marte é bem diferente daqui

Até dá para simular que o pico do Cabugi é Marte, mas a realidade marciana é muito diferente da encontrada no semiárido potiguar (e na Terra!). Elementos como gravidade, atmosfera e fontes de água, essenciais para qualquer atividade humana, são completamente distintos no planeta vermelho.

Lá, um indivíduo de 100 kg, por exemplo, pesaria somente 30 kg. E seria impossível respirar e cultivar alimentos ao ar livre porque a atmosfera marciana é cheia de gases completamente tóxicos ao homem. Por isso a necessidade de desenvolver estruturas que reproduzam as condições ambientais da Terra.

Mas água até que tem para plantar. Ela está nas calotas polares e até na superfície marciana. Para ser usada, no entanto, ela deverá ser extraída, tratada e purificada para o consumo humano, o que pode facilitar o assentamento.

É preciso simular para o homem chegar lá

A iniciativa da UFRN é considerada pioneira no Brasil, mas simulações do tipo não são novidades. Rezende, coordenador do projeto, conta que vários países têm investido na criação de ambientes análogos para que algumas condições sejam simuladas, tais como isolamento, relevo e reutilização de água.

Lucinda Offer, diretora executiva da Mars Society —iniciativa criada em 1998 para fortalecer a ideia de explorar e colonizar Marte—, defende que espaços análogos devem existir porque permitem entender quais atitudes podem ser tomadas se alguma coisa der errado em uma missão real.

"A simulação em ambientes análogos é parte de muitas missões espaciais. Os astronautas da Apollo, por exemplo, praticavam como usar os instrumentos para coletar rochas em um ambiente geograficamente análogo para, assim, aprender como encontrá-las, coletá-las e ensacá-las na Lua, com cerca de cinco ferramentas diferentes", explica.

Lucinda conta que ela também já foi parte de uma equipe de exploração análoga em 1997, na MDRS (Mars Desert Research Station), em Utah, nos Estados Unidos, quando trabalhou para a Nasa e para a Mars Society. A missão dela era testar remotamente uma pequena sonda que abrigaria astronautas.

"É assim que os operadores também dirigem as sondas hoje em dia, remotamente. Eles conduzem uma ciência remota. É preciso saber a distância do sinal, quanto tempo duram as baterias, enquanto a sonda me dá a visualização e o som no ambiente", explica.

Para ela, a simulação de um habitat permite pesquisas em várias áreas. "Qual alimento eles comerão? Como ficará a parte mental desses astronautas? Eles conseguem ligar bem com morar em um grupo pequeno por um período longo de tempo?", questiona.

Além disso, não só astronautas participam das simulações. Cientistas de diversas áreas conduzem pesquisas nos habitats, como biólogos, químicos, físicos e geólogos, além de engenheiros da área civil, mecânica e elétrica.

José Dias, professor da UFRN e doutor em Astrofísica e Técnicas Espaciais, salienta que é necessário sempre entender que é impossível conhecer o planeta com exatidão a partir da Terra e das suas condições.

"É uma especificidade que gera dados importantes, como a reutilização de água em ambientes escassos. Para quem vai para missões, é importante para entender a engenharia, a arquitetura, o conforto e a vivência das condições. Temos uma iniciativa muito boa aqui, apesar de que a nossa ciência não acompanha o mundo e há pouco investimento nela", conclui.