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Musicoterapeuta negro recorre a ancestrais e lives para superar pandemia

O arte-educador e musicoterapeuta Renato Gama adaptou seu trabalho para o contexto da pandemia e passou a atingir mais pessoas - Cassandra Mello/Divulgação
O arte-educador e musicoterapeuta Renato Gama adaptou seu trabalho para o contexto da pandemia e passou a atingir mais pessoas Imagem: Cassandra Mello/Divulgação

Janaina Garcia

Colaboração para Tilt

09/08/2020 04h00

Sem tempo, irmão

  • Nascido e criado na periferia da zona leste de SP, Renato Gama encontrou nas redes sociais um jeito de driblar o impacto da covid-19 no setor
  • Aulas de musicoterapia e lives atingem público mais diverso que o cenário anterior à crise sanitária
  • Pai de três filhos homens, Gama conta que busca dar a eles uma educação não machista e com liberdade de escolha

Uma das memórias mais antigas do arte-educador e musicoterapeuta Renato Gama é a do pai andando pelas ruas do bairro onde a família estabeleceu raízes, a Vila Nhocuné, na periferia da zona leste de São Paulo, cumprimentando todos os negros com quem se deparasse pelo caminho.

"Eu não entendia aquilo. Perguntava se ele conhecia todas aquelas pessoas e ouvia sempre dele um 'não conheço, mas é meu camarada'. Essa 'tecnologia' do afeto leva muito tempo até a gente entender."

Negro, pai de três filhos homens, Gama, hoje com 45 anos, recorre à tecnologia para sobreviver em meio a uma pandemia que já fez mais de 100 mil mortos no país. Afinal, com o isolamento social, a orientação das autoridades de saúde para que não haja aglomerações e a pouca afinidade do atual governo em Brasília, o setor artístico acabou se tornando um dos grandes afetados pela atual crise.

Mas ele faz questão de enfatizar: "Meus ancestrais trouxeram da África as tecnologias de sobrevivência — vieram de navio negreiro com as pernas amarradas e bola de ferro nos pés e morreram, muitos, com o banzo, ou saudade da própria terra. Cultivaram lavouras, estabeleceram afetos, e foram essas tecnologias que nos deram a possibilidade de hoje encarar essa pandemia. Por isso que, hoje, entendo muito mais o gesto do meu pai saudando os pretos do bairro."

Em entrevista a Tilt, Gama afirma que a herança cultural de resistência às adversidades, ainda mais na condição de artista negro e periférico, tem sido um de seus combustíveis para atravessar as dificuldades do atual momento se valendo de ferramentas de divulgação do próprio trabalho, como as redes sociais.

"Eu agora uso as redes sociais, que costumo chamar de quintal para onde chamo os mais próximos, e os atendo como musicoterapeuta. Faço minhas lives no Instagram e Facebook, por exemplo. É aquela coisa: estamos nos reinventando, mas para nós, povo negro, isso não é novidade — então busco me inspirar nessa sobrevivência de séculos, adotada por pretos e pretas, para me manter vivo, olhar adiante e trazer meus filhos nesse movimento: 'esse é o momento, mas vamos superar'''.

Renato Gama - Arquivo pessoal/Divulgação  - Arquivo pessoal/Divulgação
Gama, segundo da direita para esquerda, toca ao lado do pai (dir.), irmão e primo
Imagem: Arquivo pessoal/Divulgação

Gama também compõe, produz e dirige espetáculos teatrais. Como musicoterapeuta, ele é sócio do coletivo Sá Menina e do estúdio Pele Preta, que promovem a cultura africana no Brasil por meio da arte, principalmente nas periferias. Ele se tornou arte-educador depois de, quando mais jovem, ter de abandonar o curso de Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, na capital paulista. Ficaram as lembranças: "Eu e um colega de sala éramos os únicos negros naquele ambiente", lembra.

Pai de 3 filhos, ele busca combater a "masculinidade tóxica"

Os filhos do artista têm 25, 9 e 4 anos. O primogênito veio quando Gama, egresso de uma família de músicos da periferia, estava deixando a adolescência.

"Sigo aprendendo e reconhecendo que é preciso muita humildade para criar um filho: é um processo constante de desconstrução e de nos entender como homens, porque nossa masculinidade está ainda muito ligada a um lugar tóxico, machista", afirma.

"Procuro sempre enfatizar aos meus filhos que eles têm o direito de voar, a liberdade da escolha, mas sempre levando em consideração que eles têm direito de usar a sensibilidade, e não a força, e sim, serem sensíveis, se emocionarem. Isso nunca será fraqueza."

"Poder da música" na AACD incentivou estudo de musicoterapia

Gama começou a lidar com musicoterapia em 2014, ao fazer curso na área. A motivação havia chegado um pouco antes disso, ao ter contato com crianças na AACD e se emocionar as vendo cantarolar o refrão de uma composição sua que havia acabado de apresentar em uma peça aos pequenos.

"Eu tinha acabado de apresentar uma peça sobre um boi voador que sobrevoava Cabo Verde até o Brasil, 'Boi Beleza'. Terminei, e foi incrível ver o impacto daquilo em crianças que, embora com dificuldade de mobilidade, até de fala, estavam cantando a música da peça. Você vê o poder da música? Ali decidi estudar musicoterapia", relata.

Conforme o artista, o Sesc o havia contratado para realizar a musicoterapia em seus funcionários — por essa razão, diz, "se lembraram de mim na pandemia, pois agora estenderam esse projeto para todos, com inscrição gratuita". O projeto oferecido pela instituição se chama "Musicoterapia e improvisação musical com objetos".

Público de lives: mais diverso

Com as lives no Instagram e no Facebook, mudou também o perfil do público que o acompanha.

"Antes da covid-19, eu fazia shows em Sescs e locais da Prefeitura e atingia um determinado recorte de público. Agora, alcanço pessoas de 16 a 70 anos, por exemplo, comentando, interagindo em uma mesma live. Isso mostra que a música é completa e atinge a completude das pessoas — e, mesmo que a arte nunca tenha sido o centro das atenções, é ela, ainda, o instrumento fundamental para mostrar a diversidade humana", defende.

E é a esperança pelo papel social da arte que, aposta o musicoterapeuta, há de trazer algum alento para o cenário pós-pandemia que um dia, espera-se, emergirá.

"Entre os nossos, dizemos que 'quem nos protege, não dorme' - o que está além da matéria, nossos orixás, nossos encantados, nos protegem. Isso nos dá potência para encarar e seguir esse caminho. E o mundo já está mostrando que, sem arte, ninguém sobrevive: a vida fica seca e dura, e qualquer coisa, nessa condição, quebra. Vamos continuar florindo, lutando, sempre nessa direção."