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Exterminador de celular fuleiro: Como a Xiaomi virou uma potência

Lei Jung fundou a Xiaomi e eliminou a fama de que celulares chineses são ruins - Vincent Yu/AP Photo
Lei Jung fundou a Xiaomi e eliminou a fama de que celulares chineses são ruins Imagem: Vincent Yu/AP Photo

Felipe Zmoginski

Colaboração para o UOL Tecnologia

26/08/2018 04h00

É barato e de baixa qualidade. Não era boa a fama da produção de smartphones chineses que levavam nomes como Diesel, Meizu e o mítico HiPhone até o início dos anos 2000. A má qualidade destes produtos, que superaqueciam, explodiam ou simplesmente quebravam após uma semana de uso, marcou a incipiente produção chinesa de celulares, em uma época em que não havia controle de qualidade e engenharia proprietária

Isso começou a mudar quando o engenheiro chinês Lei Jun teve uma ideia que parece óbvia: criar um produto que não fosse tão caro quanto um Nokia ou um iPhone, mas que adotasse padrões de qualidade. O resultado é que enquanto Nokia e Sony tornaram-se irrelevantes no mercado de telefonia, a Xiaomi, empresa fundada por Jun, virou a exterminadora de celulares ruins. Hoje, ela é a terceira maior vendedora de smartphones do mundo, avaliada em US$ 56 bilhões na bolsa de Hong Kong.

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Origem

Há duas décadas, as estrelas globais Sony-Ericsson, Nokia e LG moveram para o sul da China suas fábricas de celulares, explorando a base logística de Shenzhen e a mão de obra barata no país. Na época, ter um smartphone era um luxo para americanos e europeus de renda média. 

Para tentar atender o mercado interno, ex-funcionários das fábricas coreanas e finlandesas na China começaram a comprar componentes em feiras de Shenzhen e montar seus smartphones, atendendo precariamente os consumidores ávidos por um dispositivo que, além de telefonar, tirasse fotos e enviasse emails. Assim, o comum era as pessoas arriscarem um (literalmente) explosivo HiPhone.

Lei Jun levou três anos para estruturar sua empresa. Ele atraiu investimentos de fundos chineses e contratou engenheiros americanos para projetar smartphones e adaptar o Android ao gosto dos usuários chineses: com a interface apinhada de ícones e múltiplas funcionalidades.

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Em 2010, os primeiros dispositivos da Xiaomi chegaram ao mercado chinês, oferecendo conexão 3G e câmera fotográfica com qualidade compatível com as melhores lentes embutidas em smartphones da Nokia. Isso sem contar recursos que faziam toda a diferença para o usuário chinês, como filtros de embelezamento para selfies, que disfarçavam manchas na pele e eram capazes de afinar o rosto. 

Voltar-se para o mercado interno permitiu à Xiaomi tornar-se uma empresa multibilionária em apenas três anos. De 2010, ano de sua estreia, até 2013, o valor de mercado da companhia, chegou a US$ 10 bilhões.

Entre todas as marcas chinesas de celulares, como Huawei, Oppo e Vivo, a Xiaomi foi a primeira a estrear produtos reconhecidos por sua alta qualidade e manter seus produtos ?high-end? com preço baixo, ainda que isto implique em lucro (quase) zero na venda de cada dispositivo.

Segundo a consultoria NDV, a companhia lucra, em média cinco dólares por dispositivo vendido. Na lógica de Lei Jun, o dinheiro não deve vir do hardware, mas de serviços agregados.

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Celulares da Xiaomi tem recursos que agradam clientes asiáticos
Imagem: Bobby Yip/Reuters

Modelo de barbeador

Assim com uma fabricante de barbeadores não ganha dinheiro com o aparelho de barbear, mas com o consumo recorrente de lâminas e refil, a Xiaomi apostou em disseminar produtos de boa qualidade a preços próximos de seu custo e monetizar sua operação com a vendas de serviços digitais, como assinaturas de streaming de música, vídeo, jogos online e venda de apps. Como na China o Google Play não está autorizado a funcionar, usuários de Xiaomi quase todos escolhem seus apps pela loja da marca MiStore. 

A companhia cobra taxas dos gigantes da internet chinesa. Do Baidu para definir como padrão seu o buscador. Da Tencent para vender os seus mais recentes games. Startups estrangeiras que desejem decolar na China também derramam milhões de dólares para promover seu apps na MiStore.

Para disseminar seus produtos, a companhia adota um modelo de produção e venda espartano, além de uma curva de obsolescência mais longa, de 18 meses, face a uma média de 12 meses dos rivais Apple e Samsung. Explica-se: enquanto coreanos e americanos faturam o grosso de seus ganhos com a venda de hardware e precisam incentivar seus fãs a trocarem de aparelho a cada primavera, a Xiaomi não se importa que seus usuários demorem um pouco mais para trocar de aparelho, desde que sigam consumindo seus serviços digitais.

A tática não é bondade de Lei Jun, mas uma estratégia de corte de custos. Como os componentes mais recentes vão caindo de preço conforme surgem inovações na indústria, a produção de um Xiaomi fica progressivamente mais em conta. Item dispendioso no lançamento e venda de lançamentos de qualquer eletrônico no mundo, as verbas de marketing beiram o zero.

Além disso, o percentual repassado a revendedores, operadoras e parceiros de varejo é igualmente nulo. No modelo da Xiaomi, smartphones são vendidos quase que exclusivamente pelo site da empresa e entregues com frete pago pelo comprador. Zero custo com logística. 

Já a promoção dos lançamentos é tocada com um engenhoso raciocínio de escassez: poucas unidades são disponibilizadas na estreia e muito barulho é feito pela comunidade de fãs da marca. Enquanto a Samsung investe fábulas no patrocínio de times de futebol e comerciais em TV aberta, a Xiaomi economiza cada centavo e, mais do que isso, repassa os ganhos de escala ao consumidor final.

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Xiaomi foi além dos celulares: tem purificadores de ar, câmeras e até geladeiras
Imagem: Valentyn Ogirenko/Reuters

Além dos celulares

Desde 2012, a companhia iniciou um processo de diversificação de sua linha, mais amplo e agressivo que o praticado por outras marcas. Além de pulseiras e relógios, a empresa arriscou-se na produção de televisores, geladeiras e até purificadores de ar com as letrinhas ?MI?, marca registrada da companhia.

Atualmente, o portfólio da empresa inclui uma miríade de 70 produtos, todos com o DNA de hardware sem lucro e serviços digitais agregados. Nenhum destes ?novos produtos? tornou-se um hit gerador de receita como os celulares da empresa. Os consumidores não estão comprando games nas TVs digitais da Xiaomi ou fazendo encomendas ao supermercado pela geladeira inteligente da marca, embora estejam se beneficiando do custo baixo da companhia.

O esforço em encontrar o ?novo smartphone? da próxima década, porém, parece estar se desenhando longe das TVs e geladeiras: os assistentes de inteligência artificial. Assim como a Amazon comercializa o Echo, nos EUA, a Xiaomi vende na China, o Mi Ai, que segue o mesmo conceito: um equipamento que interpreta linguagem natural e é capaz de pedir delivery de comida, agendar corte de cabelo no salão mais próximo e, claro, fazer compras online.

Embora pareça uma cópia da Amazon, os resultados da companhia chinesa são bem distintos. Enquanto nos EUA as vendas do Echo crescem em ritmo modesto, os assistentes digitais são uma modinha na China. De acordo com dados da consultoria IDC, a China sozinha concentra 37% das vendas de dispositivos do tipo no mundo.

Como ocorre com todos os assistentes virtuais no mundo, está ainda não é uma tecnologia madura. Muitas vezes eles não entendem seu pedido, erram nas ações e, às vezes, o usuário prefere simplesmente pegar o telefone e resolver as coisas.

Os tropeços, porém, não devem mudam a aposta dos executivos da Xiaomi. No modelo de vendas do Xiao AI, a companhia ainda não gera receita com serviços agregados, já que não são cobradas taxas de serviços comprados por comando de voz. Trata-se do conhecido método negativamente apelidado de ?tática dos traficantes?: você cria a dependência de seu usuário para, depois, cobrar pelo serviço.

Hugo Barra - Anindito Mukherjee/Reuters - Anindito Mukherjee/Reuters
O brasileiro Hugo Barra comandou a expansão internacional da Xiaomi
Imagem: Anindito Mukherjee/Reuters

Fracasso brasileiro 

Sonho não realizado de múltiplas companhias de tecnologia da China, a Xiaomi tentou tornar-se relevante fora da China, missão em que falharam Baidu, Tencent e, de certa forma, até o Alibaba. Em 2013, a companhia anunciou a contratação do vice-presidente mundial de Android, o brasileiro Hugo Barra, que deixou a ?vida dos sonhos? no Google da Califórnia para arriscar-se na poluída, difícil e promissora Pequim.

No comando da divisão de internacionalização da empresa, Barra montou a operação brasileira que trouxe para o país a montagem dos celulares da marca. O resultado foi um fiasco. O Brasil mergulhou em uma estagnação econômica que ainda não terminou e a MP do Bem (que oferecia benefícios fiscais para a montagem de smartphones no país) foi suspensa. Assim, os chefões da marca, na China, desistiram do Brasil em pouco mais de um ano.

Em três anos, Hugo Barra também desistiu da vida em Pequim, regressando à Califórnia, desta vez para trabalhar no Facebook. O recente IPO da Xiaomi, no entanto, revelou que Barra tinha motivos convincentes para ir à China. O lote de ações ao qual o brasileiro fazia jus rendeu-lhe R$ 800 milhões, algo como ganhar na Mega Sena da virada, sozinho, por quatro anos seguidos.

Em outros mercados, como a Europa, a Xiaomi também tropeçou. A companhia foi processada por não ter todas as patentes que precisava para comercializar seus produtos na União Europeia. Todos os erros, no entanto, foram fartamente compensados com o inesperado sucesso da empresa na Índia, onde os preços baixos e a boa qualidade dos produtos Mi conquistaram uma legião de fãs.

Para muitos analistas, a Índia será a próxima China em termos de crescimento econômico e consumo. Para a Xiaomi, o país vizinho já ocupa este espaço. E tudo conquistado sem nenhum celular fuleiro.