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Escândalo no Google expõe ligação entre gigantes de tec e o mundo militar

Desenvolvimento de novas tecnologias e forças militares andam lado a lado - Getty Images/iStockphoto
Desenvolvimento de novas tecnologias e forças militares andam lado a lado Imagem: Getty Images/iStockphoto

Rodrigo Trindade

Do UOL, em São Paulo

09/06/2018 04h00

Sabe aquelas fotos lindas do seu cachorro que você guardou no Google Fotos para liberar um espaço no seu PC ou celular? Neste momento, elas estão sendo usadas pelos braços militares do governo americano para projetos de objetivos nebulosos.

Embora o mundo militar tenha um longo histórico com grandes empresas de tecnologia, um escândalo recente no Google jogou luz sobre essa relação - e chamou a atenção para como, sem saber, pessoas normais deixam mais espertas ferramentas que são posteriormente repassadas para forças militares ou de segurança pública.

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Com projetos avançados de inteligência artificial no reconhecimento de imagens, o Google acertou em 2017 um acordo com o Pentágono para ajudar o departamento de defesa dos Estados Unidos a aperfeiçoar a inteligência artificial de drones militares

O envolvimento de uma empresa tão presente no cotidiano global no chamado "Projeto Maven" gerou uma enorme repercussão negativa assim que a notícia veio ao público - afinal de contas, parte do treinamento do cérebro do Google usa as imagens postadas pelos seus usuários, como as imagens fofas de cachorrinhos.

Pegou tão mal que a gigante foi forçada a publicar uma cartilha em que ela se compromete a não permitir que seu software de inteligência artificial seja usado em armas ou esforços de vigilância não justificáveis.

Nova corrida espacial 

Mesmo com a ação do Google, os laços entre tecnologia e forças militares não têm jeito de que serão desfeitos tão cedo. O departamento de defesa dos Estados Unidos busca com urgência pesquisadores e especialistas em inteligência artificial, para se manter no topo de uma corrida que a China se comprometeu a liderar até 2030.

Robert Orton Work, ex-vice-secretário de defesa americano, comparou a situação atual ao lançamento do satélite Sputnik pela União Soviética, no começo da corrida espacial entre soviéticos e americanos. Só que, para acompanhar o ritmo dos chineses, os militares precisam dos melhores talentos científicos do ramo. Onde encontrá-los? No Vale do Silício.

A região que abriga Google, Facebook, Apple, Tesla, Uber e Twitter é o maior celeiro americano no desenvolvimento de inteligência artificial, de aprendizagem de máquinas e de internet das coisas. Work fez parte da criação do Projeto Maven, que busca estreitar ainda mais a colaboração entre militares e empresas de tecnologia. A "Bloomberg" dá a ideia do tamanho do interesse e reporta que mais de 100 empresas tecnológicas estiveram em um evento do Projeto Maven promovido pelo exército americano em outubro do ano passado. 

Outros exemplos abundam: a Microsoft deixa escancarada em seu portal corporativo uma aba destinada a mostrar soluções de defesa e segurança, na qual mostra clientes como o ministério da Defesa do Reino Unido. O mesmo se aplica à IBM, outra empresa que disponibiliza abertamente serviços a do mesmo tipo em seu site.

Embora o interesse do momento seja em inteligência artificial, a relação entre militares e empresas de tecnologia é bem mais antiga. Ela resultou, por exemplo, na origem dos telefones celulares - foi uma parceria entre a Motorola e o exército americano em 1940 que gerou o primeiro celularzão do mundo 33 anos depois. 

Descontentamento  

Só que ao contrário dos tempos da Segunda Guerra, os militares encontram agora a resistência dos funcionários das corporações tecnológicas na colaboração para projetos de defesa.

O caso do Google exemplifica bem esse contexto, já que a empresa informou que o contrato que estabeleceu com o Pentágono não será renovado e terá duração até 2019, satisfazendo críticos internos e externos. Dezenas de funcionários pediram demissão após a relação do Projeto Maven com a empresa ser divulgada.

“Estou incrivelmente feliz com essa decisão e tenho grande respeito pelas pessoas que se arriscaram e fizeram isso acontecer. O Google não deve estar nos negócios da guerra”, escreveu Meredith Whittaker, chefe de pesquisas do Google, no Twitter.

Toda reticência dos funcionários das empresas é válida, como explicou a ex-militar Chelsea Manning, responsável por alguns dos vazamentos do Wikileaks, no SXSW deste ano. No evento, ela lembrou que, antes de integrar o exército, desenvolveu um algoritmo que tinha fins publicitários, que foi aproveitado posteriormente para buscar terroristas no Iraque.

Mesmo após a nova cartilha ética, é a situação do Google é passível de dúvidas. Eric Schmidt, ex-executivo-chefe do Google e atual membro do conselho diretor da Alphabet (empresa-mãe do buscador), é chefe de um comitê consultivo federal, o Conselho de Inovação de Defesa. Este recomenda maior colaboração dos militares com a indústria da tecnologia no que diz respeito à inteligência artificial.

Amazon e polícia

A Amazon é um exemplo de que repercussão negativa não consegue frear a relação com o mundo militar e com forças de segurança. A gigante ganhou destaque neste ano por sua relação com serviços de segurança, que pouco lembram seus negócios mais conhecidos.

A empresa de Jeff Bezos vende a departamentos policiais americanos seu serviço de reconhecimento facial, chamado Rekognition. Capacitada pela plataforma de computação na nuvem da companhia, a ferramenta não é um segredo, pois está à venda no site da empresa e é anunciada como um produto para segurança pública.

O envolvimento da Amazon com forças policiais foi revelado pela ONG União Americana pelas liberdades Civis (ACLU). Segundo ela, três Estados norte-americanos adotaram a tecnologia capaz de identificar, rastrear e analisar pessoas em tempo real, reconhecendo até 100 indivíduos distintos em uma única imagem.

A ACLU criticou a postura da Amazon, que diz ter como missão “ser a empresa mais centrada no cliente da Terra”. Por conta disso, enviou uma carta à empresa na qual demanda que a Amazon pare de “empoderar a infraestrutura governamental de vigilância que apresenta um grande risco aos clientes e comunidades no país”. O documento foi assinado por outras 33 entidades.

Só que, ao contrário do Google, a gigante do comércio virtual não deu sinais de mudar seu comportamento após a repercussão negativa. A Amazon argumentou que “nossa qualidade de vida seria muito pior hoje se proibíssemos novas tecnologias porque algumas pessoas poderiam escolher abusar dessa tecnologia” e disse que suspende contas que violem a lei ou usem seus serviços de forma irresponsável.

O que as empresas têm a ganhar com isso?

No balanço financeiro de Google e Amazon, as parcerias reveladas recentemente não têm um impacto significativo, porém servem como uma apresentação de serviços para futuros negócios mais lucrativos.

O “Washington Post” apurou que a polícia do condado de Washington, no Estado de Oregon, contratou o serviço da Amazon por um preço baixíssimo, quase inacreditável: entre US$ 6 e US$ 12 mensais. Tudo isso para armazenar 300 mil fotos de suspeitos para que estas sejam processadas pelo Rekognition a partir de câmeras de segurança públicas, privadas ou carregadas por policiais no corpo.

No caso da gigante de buscas, o preço pago pelo Pentágono era irrisório em comparação ao faturamento de US$ 110 bilhões da empresa em 2017. O “New York Times” obteve a informação que o valor recebido pela participação no Projeto Maven foi de US$ 9 milhões, podendo subir para US$ 15 milhões em 18 meses.

Por outro lado, pessoas dentro da empresa viam a possibilidade do acordo crescer para US$ 250 milhões anuais. Mesmo que não chegasse a isso, o Projeto Maven poderia abrir portas para outras parcerias militares que envolveriam cifras bilionárias, como a da Joint Enterprise Defense Infrastructure (Jedi). Esse projeto do departamento de defesa americano foi anunciado em dezembro de 2017 e busca a transposição dos dados da entidade para uma estrutura de computação na nuvem.

Embora não signifique uma colaboração com a parte militar, Google, Amazon e Microsoft são os favoritos para vencer um contrato que pode render US$ 10 bilhões nos próximos 10 anos, segundo o site “Nextgov”. Este sim seria um acordo de peso, disputado pelas maiores provedoras de serviço na nuvem do planeta.

Com cifras que chegam a US$ 1 bilhão anual no faturamento, é possível que as fotos do seu cachorrinho continuem ajudando o desenvolvimento de projetos militares. Mesmo que você não goste disso.