Diogo Cortiz

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Opinião

'O problema dos 3 corpos': como a China deixou de odiar sci-fi para inovar

"O Problema dos 3 Corpos" é a grande aposta da Netflix para 2024. Produzida pelos mesmos criadores de "Games of Thrones" e com um orçamento estratosférico, a obra é inspirada em um aclamado livro homônimo chinês de ficção científica. Uma empresa norte-americana investindo um caminhão de dinheiro para contar uma história criada na China me fez revisitar tudo o que eu estudei sobre o ecossistema de inovação no país asiático.

Não dá para pensar no futuro da humanidade sem pensar no que a China vai fazer. Essa é uma frase que sempre escutamos quando falamos sobre planejamento estratégico, discutindo projeções econômicas e criando cenários de inovações tecnológicas.

Eu comecei a me interessar em estudar sobre a inovação na China durante o meu doutorado. Eu pesquisava como a cultura influencia o pensamento de longo prazo e, consequentemente, as políticas de desenvolvimento científico e tecnológico.

O recorte da minha pesquisa era especialmente os países dos BRICS, então fui à China tentar descobrir o que estava rolando por lá e como os empreendedores, acadêmicos e o próprio governo pensavam a cena de inovação local.

O ano era 2014. A China tinha atingido pela primeira vez o posto de país que mais publica artigos científicos que qualquer outro no mundo. O resultado do exame PISA, que mede o nível de educação global, mostrava que os alunos de Xangai tinham uma nota em matemática que era quase o dobro da média global. E que 10% dos estudantes mais pobres em Xangai sabiam mais matemática do que 10% dos estudantes mais ricos dos Estados Unidos e vários países europeus.

O país também era a fábrica do mundo. Marcas de todos os segmentos alocavam pelo menos uma parte de sua produção em alguma província chinesa. A Apple tinha - e ainda tem - gravado em todos os seus produtos a frase: "Designed by Apple in California. Assembled in China".

Eu queria tentar encontrar traços de resposta para por que ainda não existirem produtos inovadores e de qualidade que pudessem ser "Design in China. Made in China". O TikTok não existia. A BYD era desconhecida, assim como Xiaomi e outras marcas que hoje fazem sucesso.

Descobri, assim que pisei na China, que eles buscavam a mesma resposta. Conversei com empreendedores, pensadores, acadêmicos, pessoas do governo e todos tinham o sentimento: "Nós temos conhecimento. Nós temos poder de produção. Por que não conseguimos lançar produtos inovadores?".

Em uma das conversas, um dos entrevistados me contou que, anos atrás, o governo chinês, a partir dessas preocupações, havia criado uma delegação para visitar os locais mais inovadores dos EUA e tentar encontrar pistas do que movimentava a criatividade por lá. Uma coisa que aparecia com frequência na história de vida das mentes mais brilhantes que estavam criando produtos de impacto era que todos liam muita ficção científica.

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Só que a China sempre teve uma relação conturbada com esse gênero literário. Durante a Revolução Cultural, os escritores de ficção científica foram silenciados. E, mesmo após o fim das reformas, quando intelectuais e cientistas passaram a ter um pouco mais de respeito, os escritores não tiveram vida fácil. Em 1983, a ficção científica foi criticada por um jornal do Partido Comunista por "espalhar a pseudociência e promover elementos capitalistas decadentes".

A coisa só começou a mudar mais recentemente, quando a China entendeu que incentivar a ficção científica era importante para movimentar o terreno fértil da imaginação e da criatividade para conseguir inovar. "É tudo uma questão de economia", lembro de ter escutado de um dos entrevistados quando perguntei sobre como o governo lidava com a contradição de promover ficção científica ao mesmo tempo que se preocupava com o controle das narrativas.

Enquanto tomava meu chá-verde em um pequeno café de Pequim, um dos entrevistados me apresentou um escritor chamado Liu Cixin e sua obra "O Problema dos Três Corpos". Ele era um grande sucesso na China, mas ainda desconhecido no Ocidente. Eu nunca tinha ouvido falar dele, mas acabou virando também um objeto da minha pesquisa.

O sucesso de Liu Cixin foi uma coisa impressionante no Ocidente. Já em 2015, a tradução inglesa de sua obra se tornou o primeiro livro de um escritor asiático a ganhar o Prêmio Hugo de ficção científica para melhor romance.

O sucesso de "O Problema dos Três Corpos" depende do talento de Liu Cixin em criar mundos que extrapolam os sentidos do presente, mas também se beneficiou com políticas do governo chinês que decidiu incentivar - e não restringir - o gênero literário.

O livro original foi lançado em 2008, mas, um ano antes, em 2007, a China havia organizado pela primeira vez na história do país uma convenção de ficção científica e fantasia aprovada pelo Partido Comunista. Um dos convidados era o autor Neil Gaiman. Em uma conversa com o escritor Kazuo Ishiguro, ele contou sobre a sua experiência:

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Eu chamei um dos organizadores do Partido à parte e disse: 'OK. Por que vocês estão agora em 2007 endossando uma convenção de ficção científica?' E a resposta dele foi que o Partido estava preocupado de que, embora historicamente a China tenha tido uma cultura de invenção mágica e radical, atualmente, eles não estavam inventando coisas. Eles estavam fazendo coisas incrivelmente bem, mas não estavam inventando.

E eles foram até os Estados Unidos e entrevistaram as pessoas no Google, na Apple e na Microsoft e conversaram com os inventores. Descobriram que, em cada caso, quando jovens, eles haviam lido ficção científica. Foi por isso que os chineses decidiram que agora iam oficialmente aprovar a ficção científica e a fantasia.
Neil Gaiman

A proposta da China era promover a produção e consumo de ficção científica. E deu certo. Em 2021, a indústria relacionada ao gênero teve uma receita de US$ 12 bilhões, com um crescimento anual de 50%, de acordo com o China Science Fiction Industry Report, publicado em 2022.

Depois de 10 anos, desde quando fiz a minha pesquisa de campo na China, as marcas chinesas passaram a conquistar uma fatia do mercado ocidental. BYD, Tik Tok, Xiaomi, Shein são exemplos do "Designed in China. Made in China".

Recentemente, vi uma entrevista do Elon Musk de 2011. Quando perguntado sobre a BYD, ele riu e disse que não a via como uma empresa que pudesse competir com a Tesla. Na opinião dele, a marca chinesa não tinha um bom carro e a tecnologia não era boa.

Avance 13 anos no tempo: a BYD é a maior fabricante de carros elétricos do mundo e sua chegada gera frisson no Brasil.

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O próprio Elon percebeu como ele estava errado. Em janeiro de 2014, ele disse que as empresas chinesas iriam "demolir" as rivais globais e que os governos precisam impor barreiras comerciais. Até mesmo ele entendeu que agora a China vai lançar no mercado produtos com boas tecnologias e um design atrativo.

Não dá para afirmar que a ficção científica teve uma influência direta nesse processo. Encontrar causa e efeito não é uma coisa trivial. Mas o lançamento da série na Netflix, que inclusive criou polêmica com chineses acusando a empresa de ter ocidentalizado demais alguns personagens, mostra que a China sabe muito bem planejar o seu futuro e fazer as reformas necessárias para fomentar um ecossistema de inovação.

A ficção científica é uma janela da imaginação que promove a criatividade e a criação de mundos. E a China entendeu que precisa disso para contar a sua nova história.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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