Mudança de hábito

Empresária dos Racionais MC's, Eliane Dias conta como profissionalizou o maior grupo de rap do Brasil

Débora Miranda De Splash, em São Paulo Marcus Steinmeyer/UOL

Levou anos até virar realidade. Ainda estudante de direito, Eliane Dias sonhou em trabalhar com os Racionais MC's. Ganhou um "não". "Insisti tanto, queria demais. Fiquei uns três meses pedindo. Eles diziam: 'Você é muito brava, muito brigona. E ainda é casada com um dos integrantes'. Mas aquela vontade ficou lá, materializou no Universo", lembra ela, companheira de Mano Brown.

Materializou e deu certo. Anos depois, o jogo virou, e ela foi enfim chamada para trabalhar com o grupo. "Me fodi", pensou na hora. Levou meses para responder. Àquela altura, já estava com a vida organizada, trabalhando, ganhando dinheiro, realizando outros sonhos. Mas encarou. Abriu a produtora Boogie Naipe, pôs ordem nos "25 anos de coisas desorganizadas" e comandou uma transformação marcante na atuação do quarteto de rap. O sucesso os Racionais já tinham, precisavam de profissionalização.

Eliane criou redes sociais, lançou produtos licenciados e fez questão de levar os Racionais a grandes casas de shows. "Meu povo merece isso." Mas nada foi fácil. Para vencer a resistência dos quatro, colocou a braveza para jogo. E levou consigo seu ativismo.

"Eu não aceito esse mundo machista e sou dura, mesmo. Às vezes, me falam: 'Você tem um coração duro'. Eu não tenho coração duro, não. Eu sou canceriana, filha de Iansã. Na minha religião, eu sou Ekedi, aquela que toma conta de todo o mundo. Na minha formação, eu sou advogada, que cuida de gente. Estou trabalhando como empresária e cuido de gente. Então, eu sou dura, sim, mas meu coração não é frio."

Você é muito para a frente!

"A principal marca do meu trabalho com os Racionais é a organização. Quando comecei, tudo precisava ser feito. Eram 25 anos de coisas desorganizadas. Primeiro organizamos as redes sociais. Tinha 2.000 redes falsas. Aquilo era assustador para mim, porque havia pessoas que conversavam com fãs como se fossem o próprio cantor. Fomos fechando tudo.

Nosso primeiro ano foi Racionais como você nunca viu. Nunca viu uma camiseta e um boné verdadeiros? Vamos fazer. E Instagram? Não tem? Vamos fazer. A gente fez um canal no YouTube, porque eles nunca tinham tido. Os Racionais cantavam com um pano no fundo do palco, era até bonito, muito artístico, lúdico. Coloquei LED.

Eles falavam pra mim: 'Você é muito para a frente'. A gente teve muito embate até eu mostrar para eles que ia funcionar.

É claro que eu trabalho, mas o meu companheiro ganha bem mais do que eu. Então, para a gente comprar uma casa, claro que o investimento dele foi maior do que o meu. Os meus filhos sempre estudaram em escola particular, e tudo sempre foi investimento dele. Então, eu devia muito ao rap e queria vê-lo nesse lugar [de destaque].

Quando fomos fazer o primeiro show no Unimed Hall, que foi a primeira casa grande a que fomos, eu quase perdi meu rim. Falavam: 'Onde já se viu? Você vai colocar o rap numa casa A?'. E eu dizia: 'Vou. O meu povo merece isso. Merece uma casa organizada, que respeite entrada e saída, que não vai ser invadida, onde não vai ter abuso de autoridade, não vai ter tiroteio na porta. As meninas vão poder usar o banheiro limpinho e organizado. Vai ter um palco legal, uma acústica boa'.

E aí foi um pau, minha filha! Nós ficamos discutindo umas quatro horas, mas eles toparam. E ficaram felizes depois. Na hora da passagem de som eu podia ver o nervoso neles, sabe? Bravos. Eu fazia cara de que estava calma, mas parecia que eu ia ter um treco. Acho que só fiquei pior no dia em que a gente fez Virada Cultural para 100 mil pessoas, porque aí eu quase desmaiei. Mas foi incrível, e essa noite foi muito especial para mim."

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

São homens brasileiros e se comportam como tal

"Ninguém concorda comigo. Não tem ninguém que facilita, não tem ninguém que me adora, não tem ninguém que acredita nos meus projetos de cara. Eu sempre tenho que convencer, sempre tenho que argumentar. No começo foi mais difícil, agora já faz sete anos que a gente trabalha junto, eles já conversam mais.

Existe uma coisa que nós, mulheres negras, passamos muito: temos que provar que o que estamos falando é verdadeiro, que vai dar certo. Eles são homens brasileiros e se comportam como tal. São machistas, são paternalistas, desconfiam, acham que a mulher precisa ser apoiada, protegida, questionada. E tudo o que eu fiz para eles em sete anos deu certo. Tudo! E se eu continuar trabalhando com eles, por mais sete anos, sempre vai dar certo.

Eu conheço cada um deles, sei a personalidade de cada um, eu sei o que ativa, o que desativa, o que acalma, o que provoca. Eu sei quem é do bem, eu sei quem é do mal. Eu sei quem não vai me apoiar nunca. Trabalhei nove anos na política, eu sou um demônio. Imagina uma pessoa que é advogada, ativista, mulher preta, política? Porra! É um demônio!

Eu sou brava mesmo, pelo fato de que a minha essência é usada de outra forma. A essência feminina de ser doce, de ouvir, de ter paciência, de ser compreensiva, ela é explorada pelo homem. Talvez na sua classe social vocês se sentem à mesa para comer juntos. Mas aqui eu conheço muitas mulheres que o marido chega em casa, se senta no sofá, e ela tem que colocar a comida no prato para ele. E eu não aceito esse mundo machista, sou dura mesmo."

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Me falam 'O seu coração é duro'. Eu não tenho coração duro, não. Eu sou canceriana, filha de Iansã. Na minha religião eu sou Ekedi, aquela que toma conta de todo o mundo. Na minha formação eu sou advogada, que cuida de gente. Estou trabalhando como empresária e cuido de gente. Então, eu sou dura, sim, mas meu coração não é frio. Eu sofro. Eu sofro com tudo isso, e eu vejo essa condição feminina em todas as classes sociais.

Eliane Dias, sobre a fama de durona

Uma negra e uma criança nos braços

"A música 'hors concours' dos Racionais é 'Negro Drama', e a minha história também está inserida nesse contexto. 'Uma negra e uma criança nos braços.' Minha mãe morou comigo na rua. Então, lógico que essa é a principal. Mas tem uma música que o Brown escreveu para o Edi Rock que chama 'Homem Invisível'. Eu fui essa pessoa. Essa música fala: 'Eu sou invisível e eu gosto assim'. É uma música que não foi o Racionais que gravou, mas foi o Brown que escreveu e eu sou apaixonada por essa música. Agora, não tem nenhuma música que eu não suporte. Eu gosto de todas.

Quanto às músicas machistas, eles que caíram em si [e pararam de tocar]. Você ter uma ativista morando dentro de casa é difícil né? Só se a pessoa for muito... Para não aprender. A minha filha, ela briga até pelo controle de televisão. Ela é inteligentíssima, intelectual. Outro dia estava lendo 'Ilíada', eu fiquei assim... Perdi! Não consigo mais acompanhar essa cabecinha aí. Ela é culta, ela lê, ela me corrige o tempo todo. Eu acho o máximo, falo: 'Venci na vida'. Ela é feminista, inteligente, guerreira, enfrenta, discute. Ela olha para o pai dela e diz: 'Não, isso aí não está certo, com isso eu não concordo'. E, claro, comigo a coisa é muito mais violenta.

Então, ele tem que aprender. O Brown é muito inteligente, ele sabe, ele acompanha, ele está no seu tempo. Aquelas músicas que eles cantavam 'Ruth, Carolina', sei lá, com um monte de nome de mulher, dentro desse contexto não cabe mais. Há 28 anos era totalmente natural, hoje não é mais. Então, eu não tenho raiva dessas músicas, porque eu entendo a história, eu sei o que se passava, eu estava ali, acompanhando.

O Racionais é especial. Eles são homens, têm defeitos e alguns defeitos eu realmente não aceito. Mas os artistas em si, quando os quatro sobem no palco, todas as vezes eles me dão uma sensação. E o artista é isso, ele tem que te dar uma sensação. Em sete anos, em todos os shows que eu fiz com eles, eu tive alguma emoção. Então está valendo. Eu perdoo as falhas que eles possuem. Vou perdoando, não sei até quando, mas eu vou perdoando."

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Ocupar espaços de decisão

"Convidada para disputar eleição eu sou sempre. Agora mesmo estou sendo muito assediada para sair candidata a vereadora. Mas eu não quero sair. Estou achando a política muito tóxica, estou com muitas críticas para a direita e a esquerda.

Eu quero que a esquerda tenha mulheres na sua executiva, quero que tenha negros na executiva. Para a gente mudar esse quadro em que nós, negros, vivemos, temos que ocupar esses espaços de decisão. Porque nenhum político de esquerda branco, macho, paternalista vai ficar horas e horas debruçado em cima de uma pauta que favorece o povo negro.

Eu não vejo o meu povo lá, ocupando esses espaços, e isso para mim é inadmissível. Nós somos 56% da população. E os políticos estão lá, no mesmo 'modus operandi', só mudando o discurso, 'aqui não cabe negro'. Então não está me cabendo. Neste momento eu não vou me prestar a esse papel. Pode ser que em 2022 eu me preste a esse papel, mas eu saberei perfeitamente o que eu estarei fazendo."

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Caetano foi o primeiro amor, Brown veio depois

"Eu dava muito trabalho para a minha mãe, e ela me levava para trabalhar com ela na casa do Vinicius de Moraes. Eu lembro muito pouco, era a filha da empregada, mas me lembro de ser bem tratada, de ouvir músicas, muita conversa e muita risada.

Depois, quando eu tinha uns 15 anos acho, fui trabalhar na casa da Maria Alice, que era namorada do Toquinho. A Maria Alice é uma mulher fantástica até hoje, ela é incrível. Ela morava sozinha, e eu olhava para aquela mulher, um mulherão, grande, branca e independente. Eu ficava: 'Meu Deus, mulher pode morar sozinha?'.

Porque na comunidade em que eu morava todo o mundo era de alguém. A dona Maria era do seu Juca. A dona Amélia era do seu João. Toda mulher, onde eu morava, pertencia a alguém. E a Maria Alice era a Maria Alice.

Ela me deu acesso a música e a livros. Eu ouvia muita música boa e podia ler. E foi aí que eu me apaixonei pelo Caetano, foi através da Maria Alice. O Caetano foi o meu primeiro amor, o Brown veio depois."

As Donas do Show

Esta reportagem faz parte de uma série de UOL Splash, com histórias de mulheres que não necessariamente são famosas ou estão em cima do palco, mas que se tornaram referências no universo da arte e do entretenimento.

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