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Com poder e ousadia, Beyoncé causa tornado no pop ao flertar com country

"Há um tornado na minha cidade", cantou Beyoncé em "Texas Hold Em", primeiro single do novo álbum, "Act II: Cowboy Carter". Em uma era onde a música pop perdeu relevância na cultura como um todo, um álbum novo da cantora americana ainda tem o impacto de um cataclismo. É o tipo de evento que ainda prende a atenção, vira assunto nas conversas, influencia outros artistas e gera memes a rodo.

Ainda mais quando o novo trabalho propõe uma guinada estética em direção a áreas pouco identificadas com a cantora. Depois de homenagear a cultura clubber e a house music em "Renaissance", de 2022, Beyoncé se volta para a música country no álbum (e segunda parte da trilogia iniciada no trabalho anterior).

No seu caso, esse direcionamento mexe não só com o que esperamos musicalmente da cantora, mas com símbolos e estereótipos mais amplos: se trata de uma mulher negra se aventurando em um gênero associado a artistas brancos, que não raro é veículo para ideias reacionárias (em 2023, um dos maiores hits do gênero, "Try That in a Small Town", de Jason Aldean, atacava em seu vídeo o movimento Black Lives Matter).

Nascida no Texas, a cantora acerta ao reposicionar a música e a cultura country em um contexto maior da experiência americana, que inclui o diálogo com vivências e personagens negros, muito além do seu cercadinho branco.

O projeto do álbum teria nascido como uma resposta a uma situação de preconceito sofrida por Beyoncé depois de se apresentar na premiação Country Music Awards, a principal do gênero nos EUA, em 2016. Sua aparição gerou repercussão negativa para a organização do evento, entre manifestações racistas e outras que desaprovam o posicionamento político mais progressista da cantora.

Vídeos da apresentação foram removidos das redes do evento. Em seu Instagram, Beyoncé não citou o ocorrido diretamente, falando apenas de um evento em que não se sentiu "bem-vinda e estava claro que não era".

O álbum é um manifesto artístico que demonstra não só seu poder e habilidade em reivindicar e incorporar um outro universo musical, mas também a ousadia em propor inovações e reimaginações no mesmo.

É um álbum onde o country ignora barreiras raciais e se deita com R&B, rap e soul. Que relê um clássico do gênero, "Jolene" (de Dolly Parton), substituindo a corna passiva e sofredora do original por uma mulher assertiva que enfrenta a "outra". Que resgata a figura de Linda Martell, estrela negra do country das décadas de 1960 e 1970 vítima de racismo constante durante sua carreira. Tudo isso validado por lendas maiores do gênero como Dolly Parton e Willie Nelson, que surgem em pequenas vinhetas ao longo do álbum.

Apenas isso já faria de "Cowboy Carter" uma empreitada impressionante. Mas ele é muito mais que "o álbum country de Beyoncé". Suas 22 faixas de 5 vinhetas avançam por uma série de territórios, incluindo o rock clássico, outra seara tradicionalmente dominada por artistas brancos.

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A música "Ya Ya" traz uma citação dos Beach Boys, quarteto californiano que foi do surf rock à psicodelia na década de 1960. "Blackbird", clássico dos Beatles, aparece em interpretação magistral, um dos momentos mais emocionantes do álbum.

Os feats com Miley Cyrus e Post Malone, ainda que não sejam dos momentos mais inspirados do disco, oferecem diálogos com vozes correntes do pop americano. Há inclusive um pouco de funk brasileiro, mais uma prova de que o gênero se dissemina pela música internacional. A música "Spaghetti" contém um sample de "Aquecimento das Danadas", faixa do DJ Mandrake de 2010.

É um álbum com quase duas horas de duração. A estratégia de estender um trabalho com o objetivo de arrecadar mais por execução é prática comum na era do Spotify, mas é inevitável que isso resulte em um certo cansaço ao final da audição.

A tendência é que cada ouvinte, com o tempo, acabe arrastando o que mais gosta para sua playlist pessoal. E, com tamanha diversidade, "Cowboy Carter" pode ser o que você quiser. "Gêneros são um conceitinho engraçado", declara Linda Martell em "Spaghetti", "na prática, alguns podem se sentir confinados por eles". Beyoncé reafirma aqui a mensagem libertária de "Renaissance" com uma grande lição sobre a importância de poder escolher o que se quer ser.

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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