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Nenê Altro, do Dance of Days, se assume como mulher transexual

A cantora Nenê Altro - Paulo Silva
A cantora Nenê Altro Imagem: Paulo Silva

Guilherme Lucio da Rocha

De Splash, em São Paulo

09/11/2020 12h00

Nenê Altro, vocalista da banda Dance Of Days, destaque da cena emo nos anos 2000, se assumiu como uma mulher transexual. Splash conversou via WhatsApp com a cantora, que diz passar por um momento conturbado, mas também de libertação.

Nenê diz passar por um processo de "autoconhecimento" há um ano e também vem superando problemas do passado, como um abuso sexual sofrido em 2010, quando morava na rua, e as acusações de agressões a ex-namoradas.

Durante a conversa, Nenê também falou sobre as composições da sua banda, que em músicas como "Se Essas Paredes Falassem" e "Vaudeville" tratavam de temas como homofobia e relações homoafetivas do vocalista, então um homem cisgênero, além do apoio que vem recebendo dos fãs e da família.

Por conta dos gastos com advogados e acompanhamento psicológico, Nenê criou uma vaquinha virtual.

Splash: Como foi se descobrir mulher transexual e quando esse processo começou na sua vida?

Nenê Altro: Eu sempre tive um lado muito feminino, creio que quem acompanha minha carreira saiba disso, então não causou muita surpresa. Sempre fui muito aberta e desconstruída sexualmente e me permiti experimentar o que sentisse vontade durante a vida. E a androginia sempre me encantou também.

Em 2019, iniciei uma jornada de autoconhecimento com a consagração da ayahuasca* e vim olhando para minhas dores e curando muitas coisas. Nessa caminhada passei a abraçar com ternura o feminino em mim e a permitir que florescesse. A transição ocorreu como um reflexo natural do reconhecimento da minha alma feminina.

Nas suas redes sociais, você também destaca o candomblé como um apoio para sua aceitação. De que forma a religião te ajudou?

Já estou há seis anos no candomblé. A religião é a base de minha vida. Sou filha de Esù, feita no santo, frequentadora do Ilê Asé Ojù Obá Baru, casa de pai Xangô, senhor da justiça. Fui acolhida em minha transição por meu asé desde o primeiro momento, pelo amor de meu pai de santo e de minha família de fé.

As religiões afro são de longe as que mais aceitam a diversidade e mais acolhem os LGBTQI+ pois enxergam além dos corpos que habitamos, acolhem nossas almas. Sou eternamente grata por esse amor e essa proteção.

No Dance of Days, você canta músicas que tratam de homofobia, questões ligadas à comunidade LGBTQI+. Qual o reflexo dessas composições hoje?

"Se Essas Paredes Falassem" foi a primeira música do rock hardcore nacional abertamente contra homofobia. Foi lançada em 2000, há vinte anos, em uma realidade completamente diferente. Sofremos muito preconceito e rejeição na época, mas serviu como um filtro necessário de nosso público e a construção de uma egrégora de amor e inclusão onde todes são bem vindes.

Já a primeira música em que assumi que me relacionava com homens data de 2005 e se chama "Vaudeville". O Dance of Days já tem uma mulher trans como vocalista, aliás, sempre teve, ela só se entendeu. Tive a aceitação e o apoio da banda desde o primeiro instante e isso foi maravilhoso para mim.

Numa live recente com o João Gordo, você comentou sobre abusos que você sofreu e sobre acusações de agressão a mulheres. Como esses episódios marcaram sua vida e como você os enxerga hoje?

Agradeço muito esse canal para me explicar (...). Eu fui adicta, uma pessoa doente, viciada em cocaína e cheguei a ser moradora de rua na época mais pesada do crack. Eu realmente sinto muito e peço perdão a todas as pessoas que se relacionaram comigo nessa época, pois eu tinha atitudes terríveis das quais me arrependo e me envergonho demais. Coloquei minha advogada à disposição para conversar sobre qualquer retratação que sintam ser possível e agradeço a oportunidade de fazer as pazes com esse passado que me pesa tanto.

Durante uma de minhas estadias pelas ruas, sofri essa violência sexual e fiquei mais transtornada ainda, chegando a tentar o suicídio diversas vezes. Desde 2010, eu decidi pela desintoxicação e foi uma caminhada muito difícil e sofrida, que levou muitos anos até chegar na pessoa que consegui me tornar, liberta de tudo aquilo que me permitia ser. ]

Hoje eu olho para tudo aquilo de cima, sabendo que venci. Toda essa luta me empodera e me faz erguer a voz para ajudar quem quer que seja que esteja passando por aquelas mesmas situações. Essa será minha principal bandeira de luta.

E como está sua rede apoio neste momento?

Minha família inteira me acolheu, minhas duas filhas estão comigo, minha mãe, minha irmã e centenas de amigues querides da classe artística, das religiões que frequento e dos círculos pessoais. Quanto aos fãs, não tenho nem o que falar, eu SÓ tenho recebido amor. E muito, incondicional e presente. Meu recado é: Aguardem que tudo isso vai gritar em nosso próximo álbum a ser gravado no começo do ano que vem, definitivamente, pelo momento único, o mais importante de toda nossa carreira.

Qual a importância da Casa Florescer nessa sua fase da vida?

A Casa Florescer foi e está sendo fundamental para mim. Costumo dizer que minha transição só aconteceu mesmo quando coloquei os pés na casa, quando fui acolhida, ouvida, entendida e amparada. A Casa oferece algo maior que o abrigo, ela oferece amor, convívio, acompanhamento psicológico. Recebi até orientação legal frente aos ataques preconceituosos e acusações sem embasamento que foram dirigidas a mim e espalhadas de forma cruel e irresponsável.

Essa segurança de ter uma base de apoio de pessoas que entendem do nosso processo e já sabem como lidar com essas situações é fundamental para nós, mulheres trans, que passamos por esse momento tão ímpar em nossas vidas.

*Consagração de ayahuasca é uma mistura da ingestão de um chá que altera a percepção de mundo, com uma série de rituais indígenas do Peru.