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Thiago Stivaletti

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Bom Dia, Verônica' ataca o bolsonarismo sem falar o nome do presidente

Klara Castanho, Reynaldo Gianecchini e Camila Márdila em "Bom Dia, Verônica" - Reprodução / Internet
Klara Castanho, Reynaldo Gianecchini e Camila Márdila em "Bom Dia, Verônica" Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do UOL

11/08/2022 04h00

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Sempre fui fã de filmes, músicas ou qualquer outro trabalho que traga mensagens políticas de forma cifrada. "Apesar de você / amanhã há de ser outro dia", cantava Chico Buarque em plena ditadura.

O recado era para ela mesma, a ditadura, mas o samba passou despercebido pela medíocre censura como um recado a uma mulher de quem o eu lírico teria tomado um pé na bunda.

Pode ser um pouco forçada a comparação de uma obra-prima de Chico Buarque com uma série da Netflix, mas o fato é que a segunda temporada de "Bom Dia, Verônica" surpreende em vários sentidos.

Meu temor era de que os criadores da série, Ilana Casoy e Raphael Montes, não conseguissem superar a ausência dos dois personagens mais carismáticos da primeira temporada: o casal Brandão e Janete (Eduardo Moscovis e Camila Morgado), o policial psicopata e sua mulher, que sofre todas as torturas psicológicas possíveis no sagrado lar da família brasileira.

Nesta nova safra, o grande vilão a ser combatido pela policial foragida Verônica Torres (Tainá Muller) é o pastor Matias Carneiro (Reynaldo Gianecchini).

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Alerta de Spoiler Splash
Imagem: Arte UOL

Matias é um pastor de inegável beleza e carisma que comanda seus fiéis com pulso firme e alega ter o poder de curar doenças. Por vezes, ele escolhe uma fiel (sempre uma mulher) e a convida para passar uns dias em sua mansão, desfrutando da companhia de sua mulher, Gisele (Camila Márdila), e de sua filha adolescente, Ângela (Klara Castanho). Ele abusa sexualmente dessas mulheres, além de infligir tortura psicológica à mulher e à filha.

A história de Matias encontra ecos evidentes na de João de Deus, em que as vítimas levaram muitos anos pra superar a vergonha e se unirem para denunciar um abusador de imagem tão forte. Mas a série vai além e estabelece outras ligações do pastor "iluminado": ele é o patrono e principal financiador de um orfanato que acolhe menores em situação de desamparo. Verônica logo descobre que essas crianças e adolescentes recebem um treinamento quase militar que inclui ensino de tiro e manuseio de armas. Pior: esses jovens depois tornam-se vítimas indefesas de tráfico humano, tudo comandado pela gigantesca e poderosa organização de Matias.

E assim, "Bom Dia, Verônica" costura com habilidade uma crítica a alguns pilares do bolsonarismo sem dar nome ao boi. O discurso do "Deus acima de todos", a religião cristã e evangélica que acolhe o "lado certo" da nossa sociedade - os não cristãos, como deixou claro nossa primeira-dama, nem merecem respeito. A cultura armamentista que prega a moralização, mas só aumenta a violência. O machismo e a superioridade moral do homem em relação à mulher, que agora Bolsonaro tenta minimizar pra ganhar votos. E a polícia conivente com o todo-poderoso, que se recusa a aprofundar qualquer investigação - uma estrutura que a nossa heroína vai demolir.

Além disso, a trama ainda reserva dois personagens LGBT da Geração Z que, de formas diferentes, sofrem com a violência da máfia que Verônica tenta combater. E é comovente ver Klara Castanho, uma atriz teve a coragem de revelar o estupro que sofreu depois de um ataque absurdo que sofreu nas redes, viver uma personagem que sofre uma violência vinda do mesmo patriarcado que a maltratou e a julgou na vida real.

"Bom Dia, Verônica" podia ser apenas entretenimento, mas consegue resumir em poucos episódios muito de podre que existe no Brasil hoje.


Bom Dia, Verônica
Segunda temporada em seis episódios, na Netflix