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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A leitura apedrejada pelo terror e o papel da imprensa no caldo golpista

Fragmento de Tentação de Santo Antônio, de Joos van Craesbeeck - Reprodução
Fragmento de Tentação de Santo Antônio, de Joos van Craesbeeck Imagem: Reprodução

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

11/01/2023 04h00

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Seria um domingo tranquilo. Depois de sair com o cachorro, buscar umas cervejas no mercado e aproveitar promoções de chocotone, preparei meio balde de café e fui para a biblioteca. Passaria algumas horas com a Bel, minha esposa, dando novo arranjo ao labirinto de livros. Lá pelas tantas, entre uma troca e outra, levantei para um gole de cachaça. Vi a notícia: o bicho estava pegando em Brasília. Foi-se o sossego. Foi-se a ideia de aproveitar o restante do final de semana para finalizar a leitura de "Afirma Pereira", do italiano Antonio Tabucchi (Estação Liberdade, tradução de Roberta Barni).

Há pouco Pereira assumiu a edição do caderno cultural de um jornal vespertino de Lisboa. O norte do trabalho é bem claro: seguir a cartilha do periódico e fingir que não vivem uma anomalia política. Se assassinatos de trabalhadores são ignorados, não é com García Llorca que Pereira se preocupará nas páginas do suplemento. Uma literatura que supostamente passe longe de ideologias é a mais recomendada. Clássicos servem como bom refúgio para que a realidade na qual está metido seja ignorada - caminho algo covarde e nada ingênuo também comum em nossos dias.

O ano é 1938. O horror se espalha pela Europa: Mussolini na Itália, Hitler na Alemanha, Franco na vizinha Espanha. Salazar em Portugal mesmo... Pereira, bom funcionário, faz soar como se tudo seguisse normal pelas ruas e aldeias ibéricas. Parece tentar acreditar que o país vive mesmo uma pasmaceira tão insossa quanto sua dieta baseada em omelete de queijo ou ervas aromáticas e limonada adoçada demais. O terror em Brasília veio enquanto o protagonista dava indícios de que deixaria de ser um palerma.

Algum tempo depois dos extremistas atacarem o centro do poder em Brasília, o colega Mário Magalhães observou: o UOL estampava em sua manchete a palavra "terroristas" para se referir aos delinquentes, enquanto O Globo e o Estadão optavam pelo eufemismo "manifestantes". "O jornalismo tem que chamar as coisas pelo devido nome", registrou o autor da biografia de Marighella (Companhia das Letras) e de "Sobre Lutas e Lágrimas" (Record), a respeito da chegada do bolsonarismo ao poder, livros centrais para a compreensão do que estamos vivendo.

Penso em Pereira não pela forma como boa parte de nossa imprensa ignorou a ascensão do fascismo no Brasil, mas pela quantidade de relativizações e passadas de pano que fizeram nos últimos anos. Uma enxurrada de falsas equivalências, leniência com a extrema-direita, aplausos à violência policial e cumplicidade com o golpismo militar ajudaram a nos atolar nessa lama.

Um indivíduo que idolatra torturador foi transformado num agente ordinário dentro da democracia. Truculentos que pediam por ditadura viraram manifestantes legítimos. Ataques racistas e homofóbicos foram reduzidos a meras declarações polêmicas. Enquanto livros com o que você precisa saber para ser um idiota vendiam cada vez mais, maquiaram o monstro que crescia. Tentavam transmitir isenção deturpando a realidade.

Ainda me lembro dos debates sobre chamar ou não Bolsonaro e bolsonarismo de extrema-direita e de fascistas. Repeti nos últimos anos: não devemos esperar pela possibilidade de uma versão brasileira de "Maus", de Art Spiegelman (Quadrinhos na Cia), ou de "É Isto um Homem?", de Primo Levi (Rocco), para tratar as aberrações da forma como elas merecem ser tratadas. E merecem ser tratadas assim há anos, desde antes de assumir a República.

Muito do que vivemos num passado recente e do que ainda estamos vendo no Brasil encontra paralelos em livros que mostram a ascensão de Hitler na Alemanha e de Mussolini na Itália. Por isso, insisto em indicar "Berlim", de Jason Lutes (Veneta), e "A Ordem do Dia", de Éric Vuillard (Tusquets). Por isso que "M - O Filho do Século" (Intrínseca) segue entre as leituras que desejo fazer num futuro próximo.

Escrevo sem ter finalizado o livro de Tabucchi, logo a impressão sobre o protagonista é parcial - devo voltar ao editor num futuro próximo, para falar a respeito de uma adaptação em HQ de Pierre-Henry Gomont lançada pela Nemo. Pereira e sua omissão andam juntos com quem escolheu distorcer os fatos para normalizar o bolsonarismo. Mas a realidade se impôs e agora apedreja a nossa fuça.

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