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Nélida Piñon, os saberes selvagens e o livro contra a estupidez

A escritora Nélida Piñon. - Arquivo
A escritora Nélida Piñon. Imagem: Arquivo

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

21/12/2022 04h00

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"A humanidade não pode dispensar o livro. O livro faz parte da civilização, da nossa maneira de traduzir o mundo. É onde está o repertório da nossa essência e do que nós somos. As bibliotecas são patrimônios universais. Mesmo quem não leu Heródoto é filho de Heródoto, é filho de Homero... Não seríamos quem nós somos sem o livro. E nós não podemos permitir que a selvageria e a barbárie predominem. Não podemos prescindir da cultura".

Guardo boas recordações das duas vezes que entrevistei Nélida Piñon, um dos grandes nomes da história de nossa literatura. Primeira mulher a comandar a Academia Brasileira de Letras, autora de obras como "Vozes do Deserto" e "A República dos Sonhos", Nélida se foi no último sábado, dia 17. Ela tinha 85 anos e estava em Portugal.

Como estava em Portugal da última vez em que conversamos. A desculpa era o lançamento de "Um Dia Chegarei a Sagres", seu derradeiro romance, e a comemoração de 60 anos de carreira, iniciada em 1961 com a publicação de "Guia-mapa de Gabriel Arcanjo". Digo desculpa porque esses encontros remotos com Nélida se transformavam em bons papos que tomavam caminhos diversos, como acontece nas melhores entrevistas.

Autora que olhava para o presente sem abrir mão da tradição, sempre estabelecendo diálogos com seus antecessores literários, nessa ocasião que ela reforçou como enxergava o livro e toda nossa construção cultural como uma poderosa ferramenta contra a estupidez. Também defendeu a força da imaginação, que via como uma espécie de floresta cheia de mistérios, de saberes não institucionalizados ou canônicos, de saberes "selvagens". Para ela, não havia imaginação que não fosse, de algum modo, culta.

Nessa mistura do indomável com os conhecimentos estabelecidos, enalteceu o papel que a memória, uma espécie de imaginação, tem para o ficcionista. "A memória é de uma turbulência extraordinária. Ela trai. Ela não te dá o que você quer, porque tem outras intenções. Ela não é escrava da sua vontade. Ou seja, ela é independente. A serviço da criação literária, a memória é um reduto onde você pode, talvez, recolher subsídios para o que a criação precisa para seguir adiante".

No papo, disponível no episódio 108 do podcast da Página Cinco, ainda falamos sobre cachorros. Lembrou-se de Gravetinho, cão fundamental em sua vida, dono de uma "transcendência" que a comovia, o responsável por mudar o seu afeto em relação aos animais. Não estávamos mais gravando, acho, quando trocamos algumas dicas de vinho. Nélida era embaixadora dos albariños da região da Galícia, brancos muito estimados, e deixou uma sugestão de rótulo em diálogo com a literatura: Martín Codax Rías Baixas, que segue na minha lista de desejados.

Nélida parecia tão bem nesse papo de 2021, feito por Zoom, quanto na primeira vez em que conversamos, em 2016, por telefone. Na ocasião, lançava "Filhos da América", uma coleção de quase três dezenas de textos diversos, como ensaios e discursos. Ali, ouvi a escritora falar sobre a cerimoniosa paixão por Machado de Assis, gênio que tratava sempre como "senhor", e do encanto por Adoniran Barbosa, admirado pela capacidade de "captar o cotidiano e traduzir em uma poesia descarnada, triste, conformada".

Ainda comentou a literatura feita por mulheres. "Se o mundo é dominado pelos homens, por que a literatura não será? Só posso dar boas-vindas a esse movimento inteligente, sensível e corajoso", disse, referindo-se às ações que clamavam por maior visibilidade para a autoria feminina. E afirmou: "O reconhecimento feminino é mais demorado. Paira uma suspeita em relação à obra literária de mulheres, que sempre estiveram em segundo plano".

Reconhecida no Brasil, na América Latina, em Portugal, reverenciada na Espanha. Catedrática da Universidade de Miami e escritora-visitante de Harvard e Columbia. Vencedora do espanhol Príncipe de Astúrias, do mexicano Juan Rulfo, do cubano Casa de las Americas, do chileno Gabriela Mistral e, dentre outros prêmios, do nosso Jabuti. No caso de Nélida, ainda bem, o enorme reconhecimento veio ainda em vida, como sempre deveria ser.

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