Topo

Página Cinco

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Contra o nazismo: livros que um Monark da vida deveria ler

Cena de Maus, de Art Spiegelman - Reprodução
Cena de Maus, de Art Spiegelman Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

16/02/2022 04h00Atualizada em 16/02/2022 10h49

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

"26 de janeiro. Jazíamos num mundo de mortos e de fantasmas. O último vestígio de civilização desaparecera ao redor e dentro de nós. A obra de embrutecimento empreendida pelos alemães triunfantes tinha sido levada ao seu término pelos alemães derrotados.

É um homem quem mata, é um homem quem comete ou suporta injustiças; não é um homem que, perdida toda reserva, compartilha a cama com um cadáver. Quem esperou que seu vizinho acabasse de morrer para tirar-lhe um pedaço de pão, está mais longe (embora sem culpa) do modelo do homem pensante do que o pigmeu mais primitivo ou o sádico mais atroz.

Uma parte da nossa existência está nas almas de quem se aproxima de nós; por isso, não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro homem".

Sinceramente, não creio que um Monark da vida ignore os horrores da história para defender a possibilidade de um partido nazista existir. Me parece um otimismo demasiado, até um pouco ingênuo, achar que nesta altura de nossa derrocada livros sérios podem tomar o lugar de memes para mudar a visão de mundo de certas pessoas. Em todo caso, impossível ver gente pavimentando o caminho para o recrudescimento de uma ideologia que carrega em seu cerne o assassinato e o genocídio sem se lembrar de obras fundamentais sobre o que Hitler e seus capangas pregavam e faziam.

"É Isto um Homem?", do italiano Primo Levi, é incontornável. A citação acima vem dele, de uma edição publicada pela Rocco com tradução de Luigi Del Re. Judeu, Levi foi deportado para o complexo de concentração e extermínio de Auschwitz em 1944. Virou um raro sobrevivente graças à formação em Química. O conhecimento, útil também aos nazistas, salvou Levi da morte. Mas não o salvou dos açoites, da humilhação, do massacre. Não apaziguaram os sentimentos dilacerados e a incredulidade frente ao terror absoluto, pelo contrário. São os duros relatos sobre a própria permanência entre os vivos que Levi apresenta no título publicado pela primeira vez em 1958.

No Brasil, pipocam acenos públicos em direção ao nazismo enquanto pesquisas indicam o crescimento de bandos nazistas pelo país. Ao mesmo tempo, grupos de extrema direita se consolidam em diversos países europeus, muitos deles utilizando escancaradamente referências a Hitler e seus pares. Voltando ao lado de cá do Atlântico, não surpreende que nos Estados Unidos hordas de neofascistas também desfilem pelas ruas com símbolos macabros. Na alardeada terra da liberdade que escolas retiraram da grade curricular "Maus", de Art Spiegelman (Quadrinhos na Cia), uma das HQs mais importantes da história da arte.

Cena de Berlim, de Jason Lutes - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Vencedor do Pulitzer de 1992, "Maus" é outra obra imprescindível sobre a luta pela vida, a desumanização e a morte também em Auschwitz. Desta vez o relato está centrado na sobrevivência de Vladek Spielgelman, judeu polonês e pai de Art, o quadrinista. Obtusos pediram para que a HQ fosse banida de escolas supostamente por conta de palavrões e de uma cena com nudez. Boa resposta sobre tamanha ignorância veio do escritor Neil Gaiman, um dos maiores nomes da cultura pop: "Há apenas um tipo de gente que pediria o banimento de 'Maus', seja lá como elas se chamam hoje em dia".

A história jamais se repete da mesma maneira. É importante que olhemos para períodos tenebrosos do passado para que saibamos identificar elementos semelhantes, escancarados ou não tão óbvios assim, em nosso presente. Daí, quem sabe, há alguma chance para revermos o rumo das coisas. Não dá para esperar um cenário como o vivido por Levi ou Vladek para só depois se dizer surpreso, horrorizado ou arrependido pelas atitudes não tomadas.

Não é de hoje que insisto: tão importante quanto os trabalhos sobre o holocausto são os livros que nos permitem entender como o nazismo e seu irmão consanguíneo, o fascismo, se fortaleceram e se impuseram. Aqui, dois títulos sobre a Alemanha da década de 1920 e início dos anos 1930 são ótimos.

O romance "A Ordem do Dia", de Éric Vuillard (Tusquets), é um retrato da complacência e do apoio de grandes empresas e gente influente, cheia da grana, a um Adolf Hitler em ascensão. Já "Berlim", outra HQ, esta de Jason Lutes (Veneta), é precisa ao captar a lama de ressentimento e de deterioração social e moral que fez com que parte significativa da sociedade alemã comprasse e bancasse os ideais nazistas. Nazistas que, então, podiam se organizar formalmente e alardear livremente seus planos para assassinar judeus, ciganos, comunistas, homossexuais...

De verdade, as semelhanças entre esses dois últimos livros e o que vemos acontecer no Brasil desde 2018, no mínimo, são assustadoras.

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Facebook, Instagram, YouTube e Spotify.

Livros mencionados na coluna:

'É Isto um Homem' - Primo Levi

'Maus' - Art Spiegelman

'A Ordem do Dia' - Éric Vuillard

'Berlim' - Jason Lutes

O UOL pode receber uma parcela das vendas pelos links recomendados neste conteúdo.