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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Chaves, Chapolin e doses de conservadorismo: as memórias de Roberto Bolaños

Chaves - Divulgação
Chaves Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

25/08/2021 09h58

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Numa luta de boxe, na juventude, que Roberto Gómez Bolaños atuou pela primeira vez diante do público. Contra um adversário de pouca técnica mas muita resistência, levou bem os dois primeiros assaltos do combate. Só que cansou. Percebeu que apanharia feio. Ao tomar um golpe "muito mais espetacular do que eficaz", foi à lona. Ainda não estava a ponto de ser nocauteado, mas pensou: se levantar, serei morto pelo sujeito.

"Não me restou outra escolha senão 'atuar': fingir que estava à beira de um desmaio ou síncope total, que minhas pernas estavam dobradas como se fossem massinha de modelar e que eu não conseguia ficar de pé apesar de tentar ao me segurar nas cordas do ringue". Ao longo da vida, a encenação faria com que Roberto Bolaños ganhasse parte considerável do mundo. Criador e intérprete dos protagonistas das séries "Chaves" e "Chapolin", o mexicano se transformou num símbolo afetivo de toda a América Latina.

Bolaños conta a história do nocaute simulado para evitar o provável massacre em "Sem Querer Querendo", autobiografia que publicou em 2006, oito anos antes de sua morte. O livro chega agora ao Brasil pela editora Estética Torta, com tradução de Monique D'Orazio.

"Sem Querer Querendo" tem um mérito que nem sempre encontramos em livros de grandes estrelas populares. Bolaños conduz as suas memórias abrindo mão da premeditação. Não há aquele tom de que tudo em sua vida justificaria ou serviria de alicerce para o sucesso de Chespirito, como se tornou conhecido na carreira de humorista. Leitor algum deve mergulhar na autobiografia esperando por um mero compilado de lembranças e anedotas diretamente ligadas a "Chaves" e a "Chapolin". O livro não gira somente no entorno desses clássicos, o que é bom.

Com calma que Bolaños lembra de sua infância, narra passagens da juventude, explicita a paixão pelo futebol e conta como acasos e oportunidades bem aproveitadas o levaram à comunicação, ao humor e à arte. Pelas suas memórias, temos algumas pinceladas sobre a história do México ao longo dos século 20 (o artista, que faleceu aos 85 anos, nasceu em 1929), o que remete ao papo que bati com Alan Riding sobre o escritor Juan Rulfo, outro nome incontornável da cultura mexicana.

Capa de Sem Querer Querendo - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Respeitando o encaminhar da própria vida, demora para que as criações que fizeram de Bolaños uma pessoa reverenciada em todo o continente ganhem espaço na autobiografia. Mas estão ali as raízes, a elaboração, os conflitos, as alegrias e as curiosidades relacionadas a "Chaves" e "Chapolin". Para o protagonista deste, por exemplo, escolheu o vermelho porque, dentre as cores viáveis, era a que não representava nenhuma adversidade imediata; o branco e o azul poderiam prejudicar as gravações, enquanto via o preto como fúnebre demais.

Mas há problemas. Compreensível Bolaños querer registrar seu amor por companheiras, filhos, netos, tios e afins, mas há reverências e homenagens em excesso, num tom meloso demais, com entradas um tanto dissonantes. Repetições também deveriam ser evitadas. Ao longo de "Sem Querer Querendo", o leitor encontra sabe-se lá quantas vezes a explicação de que, ao interpretar Chaves, o artista nunca quis que o espectador acreditasse se tratar de uma criança, apenas compreendesse um adulto fazendo o papel de criança.

Muitos dos gracejos e tiradas que Bolaños tenta construir ao longo do texto não funcionam. Em certos momentos, o artista parece subestimar a capacidade de entendimento do leitor com explicações dispensáveis. Em outros, num sentido oposto, passa correndo por situações históricas que mereciam ser contextualizadas com mais profundidade, como o Massacre de Tlatelolco, quando um protesto contra o governo mexicano terminou numa das carnificinas mais emblemáticas do século 20.

Ao colocar uma versão para a própria vida no papel, Bolaños apresenta um conservadorismo latente e uma visão estreita para palpitar sobre questões complexas. Algumas patadas que distribui ao longo da obra também ajudam o leitor a formar uma imagem do ser humano por trás dos grandes personagens. Um exemplo: "Quando as pessoas lhe perguntarem de que signo você é, apenas vá somando aqueles que lhe fizeram tal pergunta. É uma maneira fácil de começar a descobrir quantos idiotas existem no mundo". Essa, pelo menos, me fez dar risada.

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