Assassinatos de crianças: contos de Carrero contrastam com pasmaceira geral

No final do ano passado, a Folha apontou em uma reportagem que policiais mataram pelo menos 2.215 crianças e adolescentes no país nos últimos três anos. Apesar do número espantoso, a indignação pareceu ficar restrita a certas bolhas nas redes sociais. A impressão é que os absurdos cotidianos são tantos que acabam anestesiando parte importante da população, que apenas bufa e lamenta por um instante, isso quando ainda demonstra alguma reação a tanta barbaridade.
Não é o que acontece com o escritor Raimundo Carrero. Em 2020 ele lançou "Estão Matando os Meninos" (Iluminuras), livro que soa como um punho levantado, uma recusa a normalizar a carnificina cotidiana. O livro traz 14 contos divididos em três capítulos (ou "Cartas ao Mundo", como o autor prefere chamar). Essas cartas pujantes com mensagens e alertas para a humanidade dão sequência ao que Carreiro iniciou em "As Sombrias Ruínas da Alma", título de 1999 que lhe valeu um Jabuti na categoria Contos e Crônicas.
"Estão Matando os Nosso Meninos" começa com a tristeza do pai que reluta em aceitar a morte do filho, "rasgado a balas de rifle". A revolta está na boca dos personagens. "A escola é como se fosse uma bandeira rasgada e esfarrapada balançando na entrada com a frase escrita no centro: 'É escola, tem menino, mate'", lemos num momento. "Morte de menino é samba na laje com churrasco e cachaça. Tem quem comemore, é? Com batucada e fé", lembramos em outro.
Essa normalidade festiva que segue cada assassinato contrasta com o desespero daqueles que conviviam com o garoto. A morte do jovem não representa somente seu próprio fim, mas elimina possibilidades de futuro para o país e apaga a vida daqueles ao seu redor, que seguirão pelo mundo apenas existindo. No conto, são marcantes imagens como cemitérios só de gavetas para meninos assassinados e a porrada que é a cena do pai recusando reconhecer o corpo do filho no necrotério.
Os contos de Carrero, um dos grandes mestres vivos de nossa literatura, ecoam algumas das histórias macabras que acompanhamos ao longo dos últimos meses. Encontramos, por exemplo, a garota morta após a aula de balé, que "foi ao chão, atingida por um tiro de rifle nas costas, bem no pulmão direito". É uma clara alusão a Agatha Félix, assassinada em mais uma ação policial desastrosa.