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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Netflix diz que TV vai acabar; para Globo, modelo da rival não se sustenta

Apoiada por sucessos como Stranger Things 4, Netflix diz que TV vai acabar; para Globo, o modelo da rival não se sustenta - Divulgação/Netflix
Apoiada por sucessos como Stranger Things 4, Netflix diz que TV vai acabar; para Globo, o modelo da rival não se sustenta Imagem: Divulgação/Netflix

Colunista do UOL

28/08/2022 04h00

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Resumo da notícia

  • A guerra do streaming virou a guerra da mídia; plataformas e TVs trocam farpas à medida que aumenta concorrência entre elas e fronteiras desaparecem
  • A regra para quem produz conteúdo se tornou cortar custos e aumentar os lucros; e a expectativa é que você ajude a pagar essa conta
  • O canal ESPN e os heróis da DC podem até ser vendidos para ajudar a melhorar os resultados de gigantes como Disney e Warner Bros. Discovery

"O streaming está funcionando em todos os lugares", disse Reed Hastings, co-CEO da Netflix. "Todo mundo está aderindo. É definitivamente o fim da TV linear nos próximos cinco, dez anos". A afirmação foi feita no mês passado, em uma conferência realizada após o anúncio de resultados da gigante de streaming. Foi uma resposta à pergunta sobre os números de assinantes do segundo trimestre melhores do que o esperado pela Netflix. Embora originalmente projetasse perder mais de dois milhões de usuários, o serviço de streaming registrou apenas 970.000 cancelamentos no período de três meses.

"Nos EUA, que é um dos mercados mais competitivos do mundo, atraímos mais tempo de exibição de TV do que qualquer outro canal durante 2021 e 2022, quase igualando o total combinado das duas redes de transmissão mais assistidas", disse a Netflix em uma carta enviada aos acionistas em julho. "Nossa participação na exibição de TV nos EUA atingiu uma alta histórica de 7,7% em junho (vs. 6,6% em junho de 2021), demonstrando nossa capacidade de aumentar a participação de engajamento à medida que continuamos a melhorar nosso serviço".

Essa semana, o streaming superou oficialmente o cabo como o método mais popular pelo qual os americanos consomem conteúdo de televisão, de acordo com novos dados da Nielsen.

Streaming (por enquanto) não passou a TV

O crescimento era esperado, já que acontece há anos, mas a notícia não deixa de ser um choque. A TV a cabo é gigantesca nos Estados Unidos, bem maior que a TV aberta.

O streaming de vídeo capturou um total de 34,8% das visualizações de televisão nos EUA no mês passado, à frente de 34,4% do cabo. O crescimento foi de 22,6% ano a ano. Já a transmissão de TV aberta bateu um novo recorde de baixa, respondendo por 21,6% do volume, uma queda de quase 10% em relação aos cerca de 23,8% no ano anterior.

O Brasil também registra queda. Em apenas um ano, após o fim da pandemia, o total de TVs ligadas caiu 11%, como revelado pelo colunista Ricardo Feltrin em abril.

O segredo para o crescimento do streaming tem sido o conteúdo. A Netflix conseguiu aumentar sua participação de visualização nos Estados Unidos graças aos 18 bilhões de minutos de Stranger Things e outros 11 bilhões de minutos combinados de Virgin River e The Umbrella Academy. Os filmes também ajudaram, The Gray Man e The Sea Beast combinados adicionaram outros 5 bilhões de minutos.

A Netflix segue como a principal plataforma de streaming, com 7,7% da participação total do consumo de TV em julho. YouTube, Amazon Prime Video e Disney+ aumentaram a participação no tempo de visualização no mês passado para 7,3%, 3% e 1,8%, respectivamente, enquanto o HBO Max se manteve estável em 1%. Mas a HBO tende a crescer com o sucesso da estreia de A Casa do Dragão.

"Modelo não se sustenta", diz executivo da Globo

A TV tradicional, que inclui tanto o consumo de TV cabo quanto de TV aberta, ainda representa coletivamente a maioria das visualizações de TV nos EUA. Mas se a tendência for mantida, o streaming deve superar a TV aberta e a cabo em breve no país.

A América do Norte é o principal mercado de TV do mundo. O que acontece lá influencia o mundo inteiro, inclusive o Brasil. Mas a julgar por comentários de executivos da Globo, é cedo para a Netflix cantar vitória ou sentenciar a morte da TV.

"Não sei como o perfil de consumo vai se comportar no futuro. Nossa indústria muda numa velocidade cada vez maior", disse na quarta-feira Raymundo Barros, diretor de estratégia e tecnologia da Globo, durante um painel no SET Expo 2022, evento que reuniu lideranças da TV e streaming em São Paulo. "Em 2017, a Netflix se posicionou como uma grande plataforma de streaming, com uma proposta de valor disruptiva. Diziam que ela estava garantida. Hoje, podemos afirmar que esse modelo não se sustenta a longo prazo".

"O que vimos nos últimos cinco anos foi um modelo que parecia seguir por um caminho de crescimento contínuo. A Netflix teve uma curva de crescimento tipicamente digital, mas quando chegou aos 200 milhões de assinantes, deu uma parada". Ainda segundo o executivo, "a curva exponencial deixou de existir no pior momento, que é nesse cenário de inflação, juros crescendo e o próprio mercado financiador de conteúdos revendo estratégias. E os players que vieram depois estão sofrendo o mesmo impacto". Os detalhes do encontro foram reportador por Mariana Toledo, da Telaviva.

O novo cenário do streaming descrito por Barros forçou a Netflix e demais plataformas a reverem suas estratégias. À medida que fica cada vez mais difícil atrair novos assinantes, plataformas como Disney+ e HBO Max foram forçadas a lançar planos mais baratos com publicidade.

Prejuízos e demissões

A Warner Bros. Discovery foi ainda mais longe. Disse que irá fundir suas plataformas HBO Max e Discovery+ nos próximos meses e estuda lançar em 2023 uma versão gratuita e com anúncios para sua plataforma de streaming. A novidade irá se juntar ao Pluto, Vix e um crescente número de opções sem custo.

Ou seja, a TV tradicional, além de disputar o tempo e atenção das pessoas com o streaming, também irá concorrer pelo dinheiro da publicidade. Um cenário pouco animador para os dois lados, já que o investimento das marcas e o tempo disponível da audiência não vão aumentar na mesma proporção do crescimento da concorrência.

"No futuro, vejo uma combinação desse consumo de massa combinado ao consumo individual, no VOD, TVOD", afirmou Roberto Dias Lima Franco, diretor de assuntos institucionais e regulatórios do SBT, no evento da SET. "Concordo que é impossível prever o que vai dominar o mercado - há muitos modelos que se apresentam de forma disruptiva, mas nem todos são sustentáveis. Novas plataformas já estão nesse movimento, isto é, mudando suas fórmulas e ofertando conteúdo de maneiras diferentes. Há plataformas que arrecadaram muito dinheiro nos últimos anos e sumiram do mercado, ou que hoje valem muito menos. O mercado tende a se acomodar quando o sonho encontra a realidade", declarou.

Além disso, a implementação do 5G deve liberar espaço no 4G, diminuindo uma das principais barreiras para o streaming em países como o Brasil: o custo de acesso à internet, ainda alto para boa parte da população.

"É difícil prever o que será daqui para a frente, mas nesse segundo semestre de 2022 estamos presenciando um momento de readequação da indústria", disse Barros no evento. "A partir de agora, o processo de comissionamento de novos conteúdos será mais conservador e cuidadoso. Estamos caminhando para equilibrar receitas com assinaturas e publicidade. A indústria está voltando a ser o que já foi", disse Barros.

Após os anos loucos do streaming, onde se gastaram bilhões a perder de vista em conteúdo, agora as empresas precisam dar lucro. Além das empresas cortarem custos cancelando produções e demitindo, a consequência natural é termos menos conteúdo e assinaturas mais caras. Ou ainda, você terá de ver mais publicidade para ajudar a pagar a conta.

ESPN e heróis da DC à venda?

Ouvir de um executivo da Globo que o modelo da Netflix, baseado em streaming, não é sustentável, parece contraditório após a gigante brasileira apostar bilhões no Globoplay. Mas a Globo está em um cenário bastante diferente de seus pares internacionais.

A Warner Bros. Discovery tem uma dívida de US$ 53 bilhões e diz que verá seu lucro despencar no próximo ano. A previsão é faturar US$ 2 bilhões a menos. Isso explica o cancelamento de 36 produções, além de diversos filmes desaparecerem de suas plataformas. O risco é sua dívida ser considerada de risco, fazendo o custo disparar, inviabilizando o negócio. Não surpreende que já se fale até na venda da DC e seus heróis para ajudar a pagar a conta na Warner. Algumas das produções canceladas da Warner e DC já estariam sendo negociadas para serem produzidas em concorrentes da HBO Max.

A Disney, que deve US$ 50 bilhões, tem sido pressionada por investidores para "aumentar sua eficiência". Em uma carta divulgada essa semana, Dan Loeb, que controla o fundo de investimentos Third Point, e é acionista da Disney, pede que a dona do Mickey faça algo sobre sua estrutura de custos.

"Os custos da Disney estão entre os mais altos do setor e acreditamos que a Disney ganha significativamente menos em relação ao seu potencial", escreveu Loeb. "Instamos a empresa a embarcar em um programa de corte de custos", para melhorar as margens de lucro e vender "excesso de ativos com baixo desempenho". Dos quase US$ 82 bilhões em receita da Disney nos últimos 12 meses (terminando em 2 de julho), houve cerca de US$ 69 bilhões em despesas relacionadas, excluindo depreciação e amortização. Cortar esses US$ 69 bilhões é o objetivo de Loeb.

Além dos cortes de custos, Loeb sugere vender a ESPN, comprar o resto do Hulu e mudar membros do conselho da empresa.

E como ficam Netflix e Globoplay?

A Netflix, após perder assinantes e ver evaporar mais de 60% de seu valor de mercado esse ano, também perdeu o posto de maior do mundo em número de assinantes no streaming. No último trimestre, a Disney anunciou que era a nova líder (apesar de juntar três plataformas na conta). Seja como for, a Netflix segue pressionada porque cresce menos, e diferentemente dos concorrentes, não têm outras fontes de renda relevantes como TV, parques e resorts.

Para piorar, apesar da liderança em investimentos para criar conteúdos exclusivos para streaming (US$ 17 bilhões apenas neste ano), a Netflix tem dificuldade para criar grandes franquias como Stranger Things.

A Globo deve somente US$ 1 bilhão. A dívida é pequena, tem perfil de longo prazo e é compatível com as projeções de fluxo de caixa da empresa que tem quase US$ 3 bilhões em caixa. E, graças a duros cortes de custos e demissões, mantém um negócio lucrativo na TV. Além disso, tem fenômenos locais de audiência como o BBB e suas novelas.

A Globo quer crescer, mas sem fazer loucuras. Isso explica por que a prioridade neste momento é não alimentar a espiral inflacionária de direitos esportivos. Por esta razão, abriu mão de competições esportivas e não fechou contratos que avaliou como caros mesmo quando tinha interesse.

Mas seja a TV ou o streaming o futuro, ou como é mais provável, um misto das duas coisas, a Globo poderá escolher por onde seguir. O mesmo não se pode dizer de muitos de seus concorrentes. Seria irônico Reed Hastings, fundador da Netflix, prever o fim da TV, e antes da TV acabar, ele ver sua própria empresa engolida por concorrentes ou uma big tech como Apple, Amazon ou Google.

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