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Chico Barney

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Filme da Barbie é uma comédia onde o capitalismo é quem ri de você

Colunista do UOL

20/07/2023 12h00

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A existência do filme da Barbie nos termos em que foi proposto, por si só, já é um feito extraordinário. Que ele seja, além de tudo, gracioso, relevante e muito divertido, ao mesmo tempo em que representa os mais ferozes anseios do capitalismo corporativo, eis aí o motivo do meu assombro.

Pois trata-se de uma intrincada trama cujo cerne é uma contundente crise existencial. Mas não da Barbie, como o título faz parecer. A crise existencial quem vive é a empresa responsável por sua criação.

O ponto de vista da Mattel e seu papel na sociedade civil são desavergonhadamente as peças centrais na história. Sem rodeios. E a aflição para se encaixar nos tempos atuais é a força motriz da jornada, que só existe para tentar alcançar tal objetivo. Será que consegue?

O filme da Barbie abandona o mundo cor-de-rosa para abraçar um cinismo mal disfarçado de autoironia. Como aspecto tão cruel quanto brilhante, mistura todas as críticas que a boneca já recebeu a uma miríade dos assuntos importantes do nosso tempo, apenas para transformar tudo em novos ativos da marca.

O subterfúgio mais rasteiro nessa grande emboscada é colocar Will Ferrel como o CEO da empresa. Ator supostamente carismático e muito popular nos Estados Unidos, ele ajuda a distorcer a percepção sobre o mundo corporativo: 'Veja só, esses engravatados não são perigosos, são apenas patéticos! Não agem por mal, mas por inépcia.' Com isso, infantiliza a personificação mais cruel do capitalismo, o topo da cadeia alimentar.

Da mesma forma que a Marvel tenta fazer com Stan Lee, a Mattel lança mão da criadora da boneca, Ruth Handler, como contraponto romântico e aspiracional dentro dessa hierarquia canhestra. É a responsável pelo sonho, a detentora da ética pela qual a propriedade intelectual pode seguir fiel.

O cinema de alta performance aprendeu quais botões deve apertar para parecer virtuoso ao mesmo tempo em que chama atenção para si mesmo com toneladas de feedback negativo das parcelas mais retrógradas da sociedade. Em dado momento, as barbies literalmente acordam de um transe conservador rumo ao progressismo —uma referência nada sutil ao termo 'woke' que inunda algumas das discussões menos saudáveis nas caixas de comentários internet adentro. Em outra cena, a protagonista chora ao ser chamada de fascista por uma adolescente engajada.

Barbie traz várias outras referências fáceis de identificar. Acenos a Matrix, rompantes de Feitiço do Tempo e, no final das contas, é um pouco como se o Woody de Toy Story tivesse a oportunidade de ler Karl Marx com o intuito de debater o conceito de mais-valia com Andy.

Margot Robbie está genial como a Barbie Estereotipada, dando uma profundidade quase sinestésica à trama como um todo. Ao mesmo tempo que passa verdade nos momentos mais inverossímeis, nunca se permite ir longe demais na dimensão das emoções humanas.

Ryan Gosling é um tanto mais caricato que a parceira, mas por razões plenamente justificadas no roteiro. E consegue emprestar alguma graça a um personagem que sob uma tutela menos habilidosa certamente surgiria intragável. Todo o elenco de apoio é ótimo, em especial Issa Rae, uma das artistas mais magnéticas deste século.

O filme tem piadas ótimas e perspectivas interessantes em um contexto bastante objetivo a respeito dos desafios das mulheres na sociedade machista. E não esconde que usa desse discurso para tentar reconstruir a imagem da boneca perante a opinião pública, sem nunca cair na armadilha de se levar muito a sério —por mais que os assuntos que denuncia sejam sérios.

O equilíbrio acontece pelo filme ser extremamente franco no seu intuito de recuperar a moral da marca para vender brinquedos e, até mais do que isso, ocupar um espaço de viés positivo na disputa por atenção de um público soterrado de opções.

Barbie é uma comédia onde o capitalismo ri do público, tentando provar que acompanhou a rotação da Terra e está mais uma vez alinhada ao zeitgeist. Por mim, tudo bem.

No grande centro de reciclagem que é Hollywood, afinal de contas, plástico é a matéria de que são feitos os sonhos.

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