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Cidade dos Mortos: o cemitério no Egito onde vivem milhares de pessoas

Na Cidade dos Mortos, túmulos fazem parte dos quintais das casas - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh
Na Cidade dos Mortos, túmulos fazem parte dos quintais das casas Imagem: REUTERS/Amr Abdallah Dalsh

Marcel Vincenti

Colaboração para o UOL

31/03/2018 04h00

Após cruzar as caóticas ruas do centro do Cairo, o táxi me deixa em uma avenida que oferece vista para o que parece ser um típico bairro pobre egípcio: casinhas sem acabamento, ruas cobertas de areia e cúpulas de mesquitas um tanto dilapidadas. 

Porém, depois de caminhar cinco minutos rumo ao interior desta paisagem, comprovo que este não é um lugar qualquer quando vejo uma mulher idosa estendendo roupas recém-lavadas. É uma cena ordinária, mas com um detalhe chamativo: o varal que sustenta as peças está preso entre duas lápides de túmulos do século 18.

Paisagem da Cidade dos Mortos, cemitério do Cairo onde vivem milhares de pessoas - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh
Paisagem da Cidade dos Mortos, cemitério do Cairo onde vivem milhares de pessoas
Imagem: REUTERS/Amr Abdallah Dalsh

As sepulturas fazem parte do quintal da casa da senhora, que fica na área conhecida como Cidade dos Mortos, um cemitério da capital do Egito onde vivem milhares de pessoas (não há consenso sobre um número certo, mas há estimativas que chegam a 500 mil habitantes).

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Chamada pelos nativos de "Al Arafa", esta necrópole tem uma história com mais de mil anos. Parte de sua ocupação por gente viva ocorreu a partir dos anos 1960, quando o Cairo teve um grande aumento populacional, mas não gerou condições econômicas para que todos pudessem pagar por um lugar parar morar.

Casas foram construídas entre e sobre os túmulos. E um fato curioso: muitos dos habitantes não têm nenhuma relação familiar com os defuntos que estão enterrados sob suas moradas.

Na Cidade dos Mortos, há casas entre e sobre túmulos e mausoléus - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh
Na Cidade dos Mortos, há casas entre e sobre túmulos e mausoléus
Imagem: REUTERS/Amr Abdallah Dalsh

Toda a área é cortada por vielas poeirentas, onde é possível ver crianças jogando bola, idosos sentados sob as poucas sombras disponíveis e, de vez em quando, caixões de recém-falecidos sendo transportados rumo a uma cova aberta (diversas das áreas da Cidade dos Mortos ainda são um cemitério em operação).  

Hospitalidade

No caminho, sou abordado por um jovem egípcio chamado Youssef, de 20 e poucos anos. Ele quer saber de onde eu sou e pergunta se estou gostando do Egito.

Seguindo a tradição da hospitalidade árabe, ele me convida para conhecer sua casa, que fica no meio da Cidade dos Mortos. Ao chegar lá, a cena se repete: roupas penduradas em varais esticados entre lápides de túmulos, desta vez datando do século 19.

Moradora da Cidade dos Mortos anda entre os túmulos deste cemitério do Cairo - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh
Moradora da Cidade dos Mortos anda entre os túmulos deste cemitério do Cairo
Imagem: REUTERS/Amr Abdallah Dalsh

Youssef afirma não conhecer as pessoas que estão sepultadas em seu quintal e diz que vive nesta necrópole desde que nasceu. Seus pais (um porteiro de prédio e uma dona de casa) se mudaram para o cemitério nos anos 1980, pois, segundo ele, não tinham condições financeiras para alugar ou comprar um imóvel no Cairo.

O interior de sua residência é extremamente bem cuidado, além de ter eletricidade e água corrente: são dois quartos recém-pintados, sala e cozinha, que abrigam uma família de sete pessoas. As janelas dão vista para as tumbas no quintal. 

Na Cidades do Mortos, famíilias vivem ao lado de túmulos de pessoas desconhecidas  - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh
Na Cidades do Mortos, famíilias vivem ao lado de túmulos de pessoas desconhecidas
Imagem: REUTERS/Amr Abdallah Dalsh

Enquanto sua mãe nos serve chá, Youssef me conta que não tem planos de sair do "Al Arafa". Fala que está acostumado com o lugar e que, mesmo que quisesse, não conseguiria se mudar para outro local: está desempregado e não nutre esperanças de encontrar trabalho em um Egito em permanente crise econômica. "Provavelmente vou morrer aqui", diz ele, dando risada.

Sem gorjeta

É fácil se perder ao atravessar a Cidade dos Mortos. O lugar é enorme e a sobreposição de residências e túmulos na paisagem é confusa. Mais de uma vez, porém, algum habitante local se dispõe a me mostrar o caminho e até indicar lugares para visitar lá dentro, como suas mesquitas cor de terra.

Entrada de residência da Cidade dos Mortos, no Egito - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh - REUTERS/Amr Abdallah Dalsh
Entrada de residência da Cidade dos Mortos, no Egito
Imagem: REUTERS/Amr Abdallah Dalsh

Apesar da situação de pobreza, nenhum dos moradores do "Al Arafa" pede "bakshish" (a palavra árabe para gorjeta) ao me ajudar. Isso chama a atenção, pois, em lugares mais prósperos do Cairo (como o mercado de rua Khan al Khalili), os nativos fazem de tudo para tirar dinheiro dos turistas por qualquer motivo.

Muitos egípcios dizem que pode ser perigoso para um estrangeiro explorar sozinho a Cidade dos Mortos, citando possibilidades de assalto em suas vielas isoladas.

Mesmo assim, a necrópole é visitada por um número considerável de turistas que estão na capital egípcia. Se quiser ir até lá, contrate um guia local, que pode ser facilmente encontrado nos hotéis do Cairo.