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Abaporu: como o Brasil 'perdeu' para a Argentina obra icônica do modernismo

Agora, o Abaporu só volta ao Brasil "a passeio", como nesta exposição realizada no MASP, em São Paulo, em 2019 - Nelson Antoine/Folhapress
Agora, o Abaporu só volta ao Brasil "a passeio", como nesta exposição realizada no MASP, em São Paulo, em 2019 Imagem: Nelson Antoine/Folhapress

Luciana Taddeo

Colaboração para Nossa, de Buenos Aires, Argentina

18/02/2022 04h00

Nesta semana, o Malba (Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires) está com uma programação especial pelo centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Entre a série de eventos, realiza até o fim do mês o "Itinerário Brasil", uma visita guiada com foco nas obras brasileiras do acervo.

A comemoração no país vizinho tem motivo: o Malba abriga há quase duas décadas o Abaporu, da Tarsila do Amaral (1883-1976), uma das obras mais emblemáticas do período antropofágico do movimento modernista no Brasil. "Sempre foi uma das obras mais ´mimadas´, pela sua importância, por como representa essa união amorosa entre a Tarsila e o Oswald de Andrade e pela interação criativa entre o movimento antropofágico e a peça", diz María Amalia García, curadora do museu.

Fachada do Malba esta semana: Abaporu é uma das estrelas do museu - Luciana Taddeo/UOL - Luciana Taddeo/UOL
Fachada do Malba esta semana: a brasileira Abaporu é uma das estrelas do museu
Imagem: Luciana Taddeo/UOL

Mas como a pintura, que provavelmente é a mais valiosa da arte brasileira, acabou em um museu da Argentina?

Assinada em 1928 pela artista brasileira, a icônica pintura brasileira foi inicialmente um presente de Tarsila para seu marido, Oswald de Andrade, que se encantou com a obra. "Ele ficou alucinado, disse que parecia o homem plantado na terra, que parecia um atropófago, essa foi a interpretação dele", conta a Nossa Tarsilinha do Amaral, sobrinha-neta de Tarsila.

Segundo ela, a artista recorreu a um dicionário de tupi-guarani de seu pai e, juntando as palavras Aba (homem) e Poru (que come gente), chegou ao nome que batiza o quadro. Quando o casal modernista se separou, a pintora ficou com a obra.

Tarsilinha do Amaral, sobrinha neta de Tarsila do Amaral - Aloisio Mauricio/Fotoarena/Folhapress - Aloisio Mauricio/Fotoarena/Folhapress
Tarsilinha do Amaral, sobrinha neta de Tarsila do Amaral
Imagem: Aloisio Mauricio/Fotoarena/Folhapress

Anos depois, após tê-la exposto em diversas ocasiões, Tarsila decide vendê-la, nos anos 1960, para Pietro Maria Bardi, um crítico, colecionador e negociador de arte que, junto a Assis Chateaubriand, criou o Museu de Arte de São Paulo, o MASP.

"Ele seduziu minha tia, dizendo que colocaria esse quadro no MASP, e comprou por um preço irrisório. Um mês depois, chegou a notícia, por um amigo, de que o Abaporu tinha sido vendido para um colecionador particular por uma fortuna", conta Tasilinha, e completa:

Ou seja, o Bardi ficou com esse dinheiro. Quando ela ficou sabendo disso, passou mal, ficou super chateada. Tarsila foi enganada"

Após anos com a obra, o colecionador a vende, em 1984, para o então integrante do Conselho da Bolsa de Valores, Raul Forbes, que manteve o quadro por mais de uma década. Em 1995, em meio a problemas financeiros, decide vendê-lo. Apesar dos entraves para retirá-lo do país, devido à intenção de autoridades do patrimônio histórico de tombar o quadro, a obra acaba em leilão em Nova Iorque.

Antes do tombamento, ele consegue tirar o quadro do Brasil e faz a venda lá. Muitos colecionadores brasileiros queriam comprar, mas ficaram com medo de dar o lance porque não sabiam o que aconteceria a respeito"

Muitos turistas brasileiros visitam o Malba exclusivamente para ver o Abaporu - Luciana Taddeo/UOL - Luciana Taddeo/UOL
Muitos turistas brasileiros visitam o Malba exclusivamente para ver o Abaporu
Imagem: Luciana Taddeo/UOL

O Abaporu acabou sendo arrematado pelo empresário argentino Eduardo Constantini por cerca de 1,5 milhão de dólares (em torno de R$ 7,6 milhões) — e se tornava, naquele momento, o primeiro quadro brasileiro que ultrapassou a faixa do milhão de dólares.

Ícone brasileiro em solo argentino

Costantini aproveitou que obras icônicas latino-americanas voltaram a circular no mercado das artes com a crise econômica mexicana de 1994, conhecida como "Efeito Tequila", e aumentou suas aquisições artísticas. E foi em meio a outra crise econômica, a da Argentina de 2001, que ele fundou o Malba.

Duas décadas depois, a presença do famoso óleo sobre tela brasileiro em solo vizinho não está isenta de polêmica. "Já vi muitas reações, gente emocionada, gente muito contente e gente muito, muito brava", afirma Diego Murphy, um dos educadores do Malba responsáveis pela criação e condução das visitas guiadas pelas obras.

Quem fica bravo pergunta como pode ser que a obra esteja aqui, que é do Brasil, da história brasileira. Chamo o Abaporu de ´Gioconda brasileira´, porque a Itália não perdoa que a Monalisa esteja na França, É como se o Brasil não perdoasse o Abaporu estar aqui"

A obra é uma das mais "mimadas" pelos visitantes, garante a curadora do Malba - Luciana Taddeo/UOL - Luciana Taddeo/UOL
A obra é uma das mais "mimadas" pelos visitantes, garante a curadora do Malba
Imagem: Luciana Taddeo/UOL

Para Tarsilinha, a obra estar no Malba favorece a arte brasileira. "O Eduardo foi um cara muito bacana: construiu o museu, doou grande parte da sua coleção para o Malba e o Abaporu está lá há muitos anos. Só posso agradecer a ele, que sempre o empresta para as exposições quando pedimos, faz publicações lindas e um trabalho muito bacana", diz.

Sempre falo que enquanto ele fizer isso pelo Abaporu, ele também está fazendo pela arte brasileira"

Murphy conta que nas vezes em que a obra é emprestada para outros museus, a ausência do quadro de Tarsila chega a causar lágrimas de brasileiros que viajaram para a Argentina para vê-lo.

Tentativas de negociação

Para a curadora do Malba, o Abaporu no acervo é uma mostra de "irmandade e vínculo" entre os países. Mesmo assim, não foram poucas as ofertas para que Constantini vendesse o quadro para colecionadores brasileiros.

Abaporu no Malba, em Buenos Aires - Luciana Taddeo/UOL - Luciana Taddeo/UOL
Dilma Roussef teria ouvido uma oferta de valor exorbitante para trazer de volta o Abaporu ao Brasil
Imagem: Luciana Taddeo/UOL

Apesar de em entrevistas o empresário argentino afirmar que não a venderia nem por milhões, a sobrinha-neta de Tarsila diz, que em conversa com a ex-presidente Dilma Rousseff, ele chegou a colocar valor na obra.

Eu estava do lado dela e do Constantini. Realmente ele pediu um valor absurdo, mas eu falei para ela que foi a primeira vez em que ele falou em vender o quadro. Dilma disse ´não, quando abaixar a bola dele´"

Semana de 22

Apesar de o Abaporu ser uma das obras mais importantes do modernismo e do movimento antropofágico, Tarsila estudava em Paris durante a Semana de Arte Moderna de 1922 e ficou sabendo do movimento modernista e dos eventos daquela semana de fevereiro através das cartas da amiga Anita Malfatti.

"Ela chega ao Brasil em junho, a Anita apresenta os amigos dela modernistas, e aí logo que ela conhece o Oswald, foi aquela paixão à primeira vista e eles começam a namorar", conta Tasilinha.

Digo que ela não estava presencialmente, mas acho que o espírito dela já estava lá em São Paulo"

Para a sobrinha-neta da artista, Tarsila é hoje a pintora mais lembrada do modernismo "porque se tornou a artista mais popular do Brasil, talvez ´o´ artista mais importante". "Quando a gente fala ´a´ artista, a gente costuma achar que é só entre as mulheres, então ouso dizer que ela é ´o´ artista mais importante e mais popular do Brasil", conclui.