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OPINIÃO

Preços caros e turistas demais: Gramado já vive o 'efeito Las Vegas'?

Vista aérea da Catedral de Gramado, iluminada para as celebrações de Natal - advjmneto/Getty Images/iStockphoto
Vista aérea da Catedral de Gramado, iluminada para as celebrações de Natal Imagem: advjmneto/Getty Images/iStockphoto

Colaboração para Nossa

01/11/2022 04h00

Que Gramado e região, no Rio Grande do Sul, compõem um dos grandes cases do turismo brasileiro atualmente, ninguém discorda.

O turismo se tornou ali o principal vetor de desenvolvimento econômico, responsável por cerca de 83% da arrecadação do município.

O fluxo de visitantes realmente impressiona: hoje, Gramado, com população de apenas 35 mil habitantes e sem aeroporto próprio, recebe mais de seis milhões e meio de visitantes por ano e tem a maior infraestrutura turística do Estado (mais de 13 mil leitos e quase 200 bares e restaurantes, por exemplo).

O Natal Luz, principal evento regional, segue quebrando recordes de público a cada ano.

No entanto, o turista que tenha passado uma década sem visitar Gramado seguramente se chocará ao desembarcar por ali hoje em dia. Afinal, a cidade vem passando por uma transformação tão grande que suas raízes serranas em muitas áreas já mal são visíveis, substituídas por grandes parques de estética muitas vezes caótica, meio Downtown Vegas e The Strip.

Entre dinossauros e outras figuras gigantes de estética duvidosa, parques de diversões de todo tipo, museu de cera e carros de luxo para uma voltinha em alta velocidade, Gramado vem oferecendo cada vez mais atrações que, a bem da verdade, poderiam estar (ou realmente estão!) em qualquer outro destino do planeta.

Traço das construções serranas se mistura com obras contemporâneas em Gramado - diegograndi/Getty Images/iStockphoto - diegograndi/Getty Images/iStockphoto
Traço das construções serranas se mistura com obras contemporâneas em Gramado
Imagem: diegograndi/Getty Images/iStockphoto

Além do excesso de visitantes frequentemente na cidade, há cada vez mais atrações turísticas — sobretudo focando em famílias com crianças — que não fazem quaisquer referências regionais, culturais ou históricas e, muitas vezes, poluem visualmente a beleza de suas montanhas.

"O sucesso de um destino turístico traz consequências positivas e negativas. As positivas são bem conhecidas; as negativas só temos sua dimensão quando vivenciadas", analisa Susana Gastal, professora do Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade da Universidade de Caxias do Sul (PPGTURH-UCS).

Menos bucólica, mais saturada

Ela concorda que a Gramado bucólica e romântica do imaginário de boa parte do turista brasileiro está cada vez mais "ameaçada"; mas ressalta também problemas de infraestrutura importantes com o excesso de turistas na cidade.

Há queixas dos moradores sobre trânsito, falta de água e filas em supermercados. O excesso de pessoas também leva a inflação de preços. A saturação esgota visitantes e moradores.

A professora ainda destaca a necessidade de maior oferta de lazer público, como parques e equipamentos abertos aos moradores e incentivos à participação dos mesmos nos eventos locais.

Comércio de Gramado, no Rio Grande do Sul - Cid Guedes/Getty Images/iStockphoto - Cid Guedes/Getty Images/iStockphoto
Comércio de Gramado, no Rio Grande do Sul
Imagem: Cid Guedes/Getty Images/iStockphoto

"É preciso criar políticas públicas que rompam as barreiras entre a cidade turística e a cidade do morador. Conscientizar o turista que onde ele se diverte há moradores e trabalhadores que atuam para que a experiência de visita seja agradável e bem-sucedida. A cidade pode crescer mas não pode perder a sua alma, que é o que a diferencia e a torna única", alerta.

O pesquisador Pedro Bittencourt César, coordenador do curso na UCS e líder do Núcleo de Estudos Urbanos do CNPq, concorda:

O turismo de Gramado tem pouca associação com o pensar sobre autenticidade. A própria formação da cidade é híbrida, mas sempre foi associada a um turismo de veraneio da classe abastada de Porto Alegre.

Rua Torta, em Gramado - vbacarin/Getty Images - vbacarin/Getty Images
Rua Torta, em Gramado
Imagem: vbacarin/Getty Images

Novo aeroporto regional deve atrair ainda mais turistas

Gramado há vários anos promove eventos de reconhecimento nacional e internacional, como seu Festival de Cinema. Criou um dos maiores eventos do calendário turístico nacional, o Natal Luz.

E realmente mantém sua movimentação turística o ano inteiro, inclusive para o turismo de negócios.

Mas alguns estudiosos alegam que, além de todas as questões decorrentes do excesso de visitantes, a estrutura turística adotada ali atualmente também é extremamente centralizadora.

"Gramado e região têm uma questão de monopólio muito forte. Todos os outros setores em Gramado e Canela acabam relacionados com o turismo e praticamente todas as atividades econômicas acabam sendo em função disso", explica Pedro Bittencourt César, coordenador da UCS.

Projeto do novo aeroporto que deve atender turistas de Gramado e região - Reprodução - Reprodução
Projeto do novo aeroporto que deve atender turistas de Gramado e região
Imagem: Reprodução

Segundo o pesquisador, o turismo na Serra Gaúcha foi mudando de "centros" ao longo dos anos: primeiro Caxias do Sul, depois Garibaldi, então Canela e Gramado.

"Essa alteração por um lado preocupa: Gramado não está preparada para qualquer mudança nessa centralidade. E essa dimensão tão grande de time share [propriedades de tempo compartilhado] que está agora se estabelecendo no município vai criando um cenário atípico, que afeta toda a região", completa.

Um novo fator também pode agravar a atual questão da demanda e estrutura turística por ali: o aeroporto de Caxias do Sul, previsto para iniciar suas obras no ano que vem, vai operar a menos de 50 quilômetros de Gramado e Canela. O novo aeroporto vai garantir acesso muito mais fácil e rápido a ambos os destinos para o turista que vem de longe.

Placa indica a avenida Borges de Medeiros, um dos destinos dos turistas em Gramado - Samuel Azambuja Kochhan/Getty Images/iStockphoto - Samuel Azambuja Kochhan/Getty Images/iStockphoto
Placa indica a avenida Borges de Medeiros, um dos destinos dos turistas em Gramado
Imagem: Samuel Azambuja Kochhan/Getty Images/iStockphoto

E isso pode afetar também outros municípios da região que estão vendo seus números de visitantes crescerem muito de repente, sobretudo nos arredores dos cânions Itaimbezinho e Fortaleza.

"Cambará do Sul já está se beneficiando dessa explosão do turismo. É preciso fazer um estudo para conhecer o impacto que o turismo vai gerar ali, com muita urgência, pensando nessas novas perspectivas", alerta Pedro Bittencourt César.

Um novo perfil de turista para Gramado e região

Uma pesquisa de fluxo turístico do Luca Tourism em cooperação com o Sebrae revelou que Gramado recebe 37,5% de todos os visitantes da Serra Gaúcha. Do total de turistas na cidade, quase 80% são das classes B e C (78,3%), 56% têm entre 18-40 anos e 78% se hospeda por até 3 dias.

A maioria deles vem de outras cidades do próprio Rio Grande do Sul (39,5%) e a maior concentração de visitantes de fora do estado vem de São Paulo e Santa Catarina.

Cidade iluminada durante o Natal Luz de Gramado - iStock - iStock
Cidade iluminada durante o Natal Luz de Gramado, em registro de 2019
Imagem: iStock

Mas a região está de olho agora no crescimento do turismo de luxo no Brasil — e quer uma fatia desse mercado. Nos últimos anos, vêm ocorrendo esforços de parte do empresariado local para fomentar o turismo de luxo na cidade e arredores.

Atrair cada vez mais esse perfil de turista que, por enxergar a Gramado e Canela como pontos de turismo de massa, tem preferido migrar para outros destinos da Serra Gaúcha (ou mesmo outros lugares e regiões do país) virou prioridade para muitos empresários.

Registro de 2020 durante a retomada das atividades turísticas em Gramado - Marcos Nagelstein/Folhapress - Marcos Nagelstein/Folhapress
Registro de 2020 durante a retomada das atividades turísticas em Gramado
Imagem: Marcos Nagelstein/Folhapress

A coleção Casa Hotéis, que acabou de completar 25 anos muito bem-sucedidos na hotelaria regional, vem apostando nesse segmento já há um bom tempo. Fundada pela família Peccin, historicamente ligada ao desenvolvimento turístico da cidade e à criação do Natal Luz, e proprietária dos hotéis Casa da Montanha e Petit Casa da Montanha (além do badalado Parador Cambará do Sul, nos Campos de Cima da Serra), inaugurou no final de 2018 o Hotel Wood Gramado, que injetou um certo sopro de "autenticidade" na hotelaria local.

Localizado a menos de uma quadra da Borges, a principal avenida de Gramado, o Wood é diferente de qualquer outro hotel da região. Aposta em turistas de alto padrão (diárias a partir de R$ 768, com café da manhã e minibar incluídos) com um design contemporâneo, mas que não abriu mão das influências e raízes locais.

Hotel Wood - Divulgação - Divulgação
Hotel Wood, em Gramado, aposta em clientes de alto padrão
Imagem: Divulgação

A grande protagonista ali, como o próprio nome sugere, é a madeira, que também movimenta uma das principais indústrias da região — mas utilizada no hotel com preocupação sustentável na construção e na operação diária.

A arquitetura meio alpina e a decoração dos ambientes públicos e acomodações lançam mão de diversos elementos e materiais tradicionais da região. Além disso, o restaurante da casa privilegia fornecedores locais, trabalhando com ingredientes frescos e sazonais para montar o cardápio de cada estação (que faz uma releitura interessante de pratos tradicionalmente gaúchos e serranos).

"A palavra que se associa mais a Gramado hoje é contemporaneidade, infelizmente", afirma o pesquisador Pedro Bittencourt César.

"Mas uma coisa muito interessante é que o desenvolvimento turístico da cidade é feito por empresários locais, o que favorece muito a reprodução de capital ali", diz. Resta saber se o "local" e o "regional" terão também maior influência nos novos atrativos turísticos da cidade num futuro próximo.