Cicatrizes de Raul

Zagueiro do Corinthians, Raul Gustavo cogitou desistir de jogar após morte da irmã e perda do filho

Raul Gustavo Em depoimento a Talyta Vespa e Yago Rudá Keiny Andrade/UOL

O futebol parou de fazer sentido duas vezes para mim. Soube da morte do meu filho depois de uma partida contra o Atlético Goianiense. Era o sétimo mês de gestação e o coração parou de bater. Era a segunda vez que algo assim acontecia e não consegui não associar o futebol às perdas. A cada fim de jogo, era uma notícia trágica. Eu achava que era um sinal de que eu deveria parar de jogar futebol. Não sentia alegria nem vontade. Não mais.

Fiquei dias abalado, acho que até um pouco deprimido. Senti medo de continuar jogando e continuar perdendo mais pessoas importantes. Enquanto isso, passava meus dias em São Paulo, longe da família. Cogitei largar tudo e voltar para Minas Gerais. Arranjar um emprego e ficar perto dos meus avós.

Só que meu avô estava muito feliz com a minha trajetória no esporte. Ele é um apaixonado por futebol. O sonho dele era que algum dos filhos ou qualquer um dos netos se tornasse jogador profissional. Me doía pensar em destruir essa realização.

Comecei a refletir e a entender que o problema não era o futebol. Se fosse, seriam perdas pessoais, não familiares. Sei lá, talvez machucasse o joelho. Se não fosse para ficar no futebol, eu não teria opção, mas eu tenho. O futebol não foi a causa disso. A causa é a vida. Vida é assim, infelizmente.

Keiny Andrade/UOL

Eu estava emprestado para a Inter de Limeira, pelo Corinthians, quando aconteceu pela primeira vez. Eu recebi a notícia de que minha irmã tinha morrido. Estava no ônibus, com o time, voltando para a sede do clube depois de termos vencido o Ituano. Apesar da vitória, eu estava me sentindo estranho desde o vestiário. A gente ganhou, mas eu não estava feliz. Me sentia perdido. Queria ir para casa.

Essa sensação de angústia me preencheu durante o dia inteiro. Mas foi na estrada que entendi o porquê. Meu irmão me ligou, daquele jeito dele, um pouco insensível. Atendi, e ele só disse: 'Gu, nossa irmã morreu'. Como assim? Quem morreu? E ele repetiu: 'A nossa irmã'. Meu corpo todo estremeceu. Fiquei paralisado.

Meu avô, que estava do lado dele, desligou o telefone quando percebeu que não houve muita delicadeza na fala. Em seguida, minha mãe me ligou. Foi quando descobri que minha irmã, a Preta, morreu em um acidente de carro aos 26 anos. Minha mãe me deu a notícia com a filha morta, no colo. Ela foi até o local do acidente, passou pela faixa de isolamento da perícia, caiu no barranco e parou em cima do corpo da minha irmã. Ela não conseguia falar. Só gritava.

Pedi que parasse o ônibus, disse a todos que minha irmã havia morrido e que eu precisava descer. Mas não tinha como descer ali, no meio da estrada, à noite. Fiquei desnorteado. Preta era como a gente chamava a Fabíola, minha irmã mais velha, filha da minha mãe, mas não do meu pai. Isso nunca fez diferença. Era ela quem cuidava de mim e dos meus irmãos por parte de pai, com quem eu morava. Ela passava a maior parte do tempo na nossa casa. Éramos todos irmãos por completo para a gente.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Morávamos em uma casa bem simples, com dois cômodos, em Lagoa Santa (MG). Em um quarto, dormiam meus avós e meu tio, que tem deficiência. No outro, nos amontoávamos em colchões no chão e beliches, meu pai, meus dois irmãos e eu. Quando a Preta dormia lá em casa, era com a gente que ela se juntava. Meu pai a tinha como filha. Meus avós, como neta.

Aquela viagem de volta foi um retorno no tempo: passou um filme na minha cabeça com todos os momentos que vivi com a Preta. Foram muitos. Ela tinha só 26 anos quando morreu, mas convivemos por 20. Ela fazia tudo o que eu pedia. Pedia que jogasse bola comigo, e, mesmo sem saber qualquer coisa sobre futebol, ela aceitava. Ficava no gol. Lembrei de tudo isso.

Mesmo com a morte da Preta, meu avô não queria que eu voltasse para Minas Gerais. Ele, que sempre incentivou meu trabalho como jogador, pensou que eu pararia de jogar -e por pouco não parei. Mas algo me chamava. Eu precisava ir para casa.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Meus companheiros de clube me acolheram; a Inter providenciou a passagem para eu voltar. Algo me dizia que eu tinha que ver minha mãe. E, assim que cheguei em casa, entendi o porquê de eu estar lá. Detesto velório, não vou. Eu sempre brincava com a minha avó: 'Quando a senhora morrer, não vou ao velório. Só vou ao meu porque sou obrigado'. Mas foi diferente com minha irmã. Eu queria ir.

Minha tia, uma pessoa de enorme sabedoria, traduziu o que eu sentia. Ela me disse: 'Precisamos de você como homem. Não como menino, não como filho, mas como homem, para sustentar sua mãe'. Sustentar. Foi uma palavra muito forte para mim.

No velório da minha irmã, ninguém conseguia acalmar minha mãe. Mas parece que eu consegui. Eu segurei minha mãe por baixo dos braços, fiquei atrás dela o velório todo, como um apoio. Ela não tinha chão. Desmaiou duas vezes, depois a pressão subiu.

Para ela, a vida tinha acabado. Meu padrasto não deu conta de segurá-la, meu irmão sequer conseguia encará-la. Eu mostrei uma maturidade que nem sabia que tinha naquele dia; falava com ela, acolhia, citava Deus. Não chorei. Não ali.

E tenho sentimento demais. Choro por tudo, até quando não treino bem. Nunca imaginaria ser forte em um momento tão difícil. Ela queria ficar ao lado do caixão, e eu ficava junto. Na hora do enterro, o padre perguntou se alguém iria falar algo. Ninguém conseguia. Eu falei.

Senti um propósito muito grande naquele momento. Depois do velório, minha mãe me agradeceu por ter voltado. Disse que, se não estivesse lá, eu não teria perdido só minha irmã. A teria perdido também.

Rodrigo Coca/ Ag. Corinthians Rodrigo Coca/ Ag. Corinthians

Voltei para Limeira, fiquei na Inter mais uma semana e o Corinthians me chamou de volta. Aluguei este apartamento em São Paulo e, quando sentei neste sofá aqui pela primeira vez, desabei. Só conseguia pensar na Preta. Chorei tanto, que desmaiei e dormi. Acordei passando mal, com dor de cabeça. Lembrei do velório. Eu não pude chorar naquele dia, mas ainda precisava chorar. Era minha irmã.

Decidi, então, fazer uma camiseta estampada com uma foto nossa. Comecei a levá-la para todos os jogos, esperando que, um dia, eu pudesse homenageá-la. Sou zagueiro, é mais difícil fazer gol, mas sempre tive isso comigo: 'O dia em que eu jogar com essa camisa, vou fazer um gol para a minha irmã'. Coloquei a blusa na bolsa para meu segundo jogo pelo Corinthians, contra a Ferroviária, pelo Paulista, mas esqueci de entregar aos roupeiros. Eles não levaram a camiseta, e foi minha culpa. Chorei no vestiário. Achei que iria jogar mal.

Pouco depois, no clássico contra o Santos, na Vila Belmiro, a camisa foi comigo. Foi quando fiz meu primeiro gol pelo Corinthians e pude mostrar para o Brasil, em um clássico, a importância que a Preta sempre vai ter na minha vida. Fiquei feliz, fiquei triste. Chorei de alegria e de tristeza. Muito sentimento e emoção nesse dia.

O que mais me dói é não ter realizado o sonho de estar no Corinthians enquanto ela estava aqui. Se eu pudesse, pediria só um momentinho com ela, para que me visse, hoje, vivendo esse sonho, que era de todos nós. Onde ela ia, falava de mim a quem conhecia, como se eu fosse um jogador mesmo antes de ser. Todo mundo sabia quem eu era, por ela, que dizia aos quatro ventos: 'Meu irmão vai ser jogador'.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Não foi a primeira vez que pensei em desistir. Aos 18 anos, disse a meu avô que iria conseguir um emprego para ajudar em casa. Era ele quem me dava dinheiro para pegar ônibus e ir treinar; era ele quem pagava academia para mim, enquanto as contas de casa estavam atrasadas. Não era justo, eu me culpava muito. Conversei com ele, e a resposta foi: 'Está tranquilo, não desista. Tente mais uma vez'. Foi dessa conversa que lembrei quando perdi minha irmã. E dela, novamente, quando meu filho morreu.

Meu sonho é ser pai. Ainda é. Já me imagino com um molequinho ou uma menininha espevitados, como eu fui. Eu era terrível. Nenhuma escola queria me matricular porque eu não gostava de estudar. Só jogava bola. Fazia educação física e dava um jeito de me esconder quando a aula acabava. Mudava de professor e eu fazia a aula de novo. Às vezes, ficava na quadra por quatro horários, até descobrirem que eu estava lá. Todo dia era assim.

Ninguém dava nada para mim. Eu não ia dar em nada, era o que me diziam. 'Você acha que vai conseguir alguma coisa jogando futebol? Muitos que tentaram não conseguiram, é muito difícil. Se você não for jogador, o que vai ser?'. Eu sempre tive na cabeça que seria jogador. 'E se eu for?', era a minha resposta.

Só eu sei o que vivi para chegar até aqui. Minha maior recompensa é ver a alegria da minha família, é dar uma condição melhor de vida para eles. Agora, estou longe, mas o meu sonho, mesmo, é comprar uma casa para que a gente more todos juntos. Como quando eu era criança. Afinal, tudo isso é por eles. E para eles.

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Rodrigo Coca/Agência Corinthians

Quem é Raul Gustavo

Nascido em 24 de abril de 1999, Raul Gustavo Pereira Bicalho é mineiro de Pedro Leopoldo, região metropolitana de Belo Horizonte. Desde julho de 2019, é jogador do Corinthians com passagens pela equipe sub-20 do Alvinegro e também pelo time profissional da Inter de Limeira. Atualmente, aos 23 anos, é um dos nomes mais valorizados do elenco com um contrato válido até o fim de 2024 e uma cláusula de multa às equipes estrangeiras estipulada em 50 milhões de euros (R$ 265 milhões). Com a chegada do português Vítor Pereira conquistou a titularidade e tem se destacado na Copa Libertadores e Brasileirão. Antes de assinar com o clube do Parque São Jorge, ainda na adolescência, passou pelo Democrata de Sete Lagoas, Betinense e também pelo Lokomotiva Zagreb, da Croácia.

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