Amor verdadeiro

Primeira mulher trans na Superliga, Tifanny Abreu conta como esporte foi seu "príncipe no cavalo branco"

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Adidas

Tifanny Abreu conquistou o amor verdadeiro, mas não em um relacionamento com outra pessoa. Primeira atleta trans a jogar em alto nível no Brasil, ela contou que o esporte foi o seu verdadeiro príncipe encantado, que chegou em um cavalo branco para salvá-la da fome e de todas as adversidades que enfrentou ao deixar a pequena cidade de Conceição do Araguaia, no interior do Pará.

O esporte foi a minha salvação. Ele te tira de muitas coisas. Poderia nem mesmo estar aqui presente hoje. Mas o esporte me deu uma vida melhor, me deu sustento. Eu pude proporcionar uma vida melhor para a minha família e dar uma casa para a minha mãe".

Quando criança, Tifanny acompanhava um de seus seis irmãos em corridas de rua. Ficava com os olhos marejados ao ver os aplausos que ele ganhava ao subir no pódio. Ela queria ter o mesmo sentimento, queria ver as pessoas orgulhosas dela. Tifanny compartilha essas histórias com crianças do CEU Butantã, em São Paulo, onde é embaixadora de um projeto que revitaliza quadras poliesportivas.

Em conversa com o UOL Esporte, a atleta exaltou a parceria entre esporte, cultura e educação na vida dos jovens e ainda falou sobre temas importantes como a violência contra mulheres e a inclusão de atletas trans no esporte de alto rendimento.

Adidas
João Pires/Fotojump

O esporte é tudo na minha vida. É como se fosse um casamento dos sonhos. O esporte é aquele príncipe que chegou num cavalo branco, igual a gente vê nos filmes. O esporte é meu marido perfeito."

Tifanny Abreu

Corrida de rua foi porta de entrada

Quando abraçou o projeto de revitalização de quadras de CEUs (Centro Educação Unificado) de São Paulo liderado pela Adidas, Tifanny logo relembrou de sua infância, no interior do Pará. Com poucas possibilidades e muitos sonhos, a atleta deu um jeito de praticar atletismo, um dos únicos esportes possíveis para alguém que não tinha quadras, ginásios ou piscinas disponíveis.

"Uma quadra dá a possibilidade da prática de vários tipos diferentes de esporte, e não tínhamos isso. O que nos sobrava na cidade era o atletismo, corrida de rua, né? O meu irmão competia. E ao vê-lo sendo aplaudido na chegada das corridas — ele sempre ficava entre os três primeiros —, me fazia querer também ser aplaudida, querer que as pessoas me vissem com olhos de campeã", disse.

"A gente também era muito fã de voleibol. Assistia aos Jogos Olímpicos juntos, lembro muito dos jogos Brasil x Cuba... Aí, colocava barbante ou uma corda para jogar vôlei. A nossa rede era barbante, corda lá no Pará. Só depois que eu fui pra Goiânia, já com 17 anos, e comecei a praticar mesmo o voleibol. Foi num clube. Aí eu comecei a aprender mesmo e seguir carreira como profissional", relembrou Tifanny.

Adidas
Tifanny Abreu durante inauguração de quadra revitalizada em CEU Butantã

Educação, esporte e cultura devem andar de mãos dadas

Tifanny se considera uma vencedora por "ser remunerada por fazer o que ama". Segundo a atleta, o Brasil ainda é carente de incentivos ao esporte e poderia seguir o exemplo dos Estados Unidos, com as bolsas de faculdades.

"Sempre acreditei que esporte e educação devem andar de mãos dadas. Não falo somente do esporte. Falo de esporte e cultura. No esporte, a gente não vê diferença de cor, de raça, de classe social. Todos somos iguais e todos estamos lutando pelo ponto. Então temos que nos unir para isso. A importância do esporte dentro da escola, para as crianças começarem a entender como é viver em grupo, saber competir sem maldade ou colocando algo acima ou abaixo, é muito importante", disse.

"É importante termos campeonatos escolares que valorizem o esporte, fazendo crianças ganhar bolsas em escolas melhores. Crianças com potencial esportivo, podem estudar em boas escolas graças ao esporte ou arte, como nos EUA. A gente vê que lá funciona e, por isso, eles são uma grande potência do esporte, na cultura e na arte. As crianças procuram se formar em uma determinada universidade porque vão ganhar bolsa jogando, cantando, fazendo algo que talvez os pais não conseguiriam pagar. E essa mesma fórmula é tanto para os humildes quanto para os que têm condições", complementou.

Reprodução/Instagram

Se existe a Tifanny aqui hoje, é porque muitas lutaram por mim, deram a cara a tapa ou até mesmo perderam suas vidas".

Tifanny Abreu

A única vez que Tifanny deixou seu grande amor foi em 2012, quando iniciou o processo de transição para se ver e se reconhecer como uma mulher. A atleta jogou profissionalmente em ligas masculinas até os 29 anos de idade, mas não suportava mais esconder quem realmente é. Tifanny sentiu medo de perder o direito de jogar vôlei, mas conseguiu reencontrar as quadras aos 31 anos, na segunda divisão da Itália.

No ano seguinte, em 2018, a paraense retornou ao Brasil, foi contratada pelo Bauru e se tornou a primeira mulher trans a disputar a Superliga feminina. Hoje, defende as cores do Osasco. De acordo com as regras do COI (Comitê Olímpico Internacional), atletas trans precisam comprovar que o nível de testosterona está abaixo do limite de 10nm/l de sangue por um ano antes de entrar nas competições.

"Sempre recebo mensagens de meninas trans. Também recebo mensagens de meninos trans que voltaram para o esporte, com coragem de buscar seus espaços. Inclusive, estive em um evento e disse: 'no passado, nós, pessoas trans, corríamos da polícia, com medo, hoje, nós corremos maratonas'. Então estamos lutando, buscando. E é por pessoas como eu e como outras que lutaram por mim, porque se existe a Tifanny aqui hoje, é porque muitas lutaram por mim e deram a cara a tapa ou até mesmo perderam suas vidas para que a Tifanny pudesse se apresentar", destacou.

Justin Casterline/Getty Images

"Revivi meu primeiro ano no Brasil com o caso da Lia"

Tifanny sofreu com preconceito em seu início na Superliga feminina. Muitos acreditavam que ela levava vantagem por ter nascido e passado a puberdade como homem. Além disso, notícias de descontentamento por parte de outras atletas da competição vieram à tona.

Quatro anos depois, Tifanny reviveu essa época ao se deparar com os ataques direcionados à nadadora Lia Thomas. Lia é a primeira mulher trans a se tornar campeã universitária nos Estados Unidos. A atleta tem 22 anos de idade e até 2019 disputava as competições masculinas. Em março, conquistou as 500 jardas nado livre do circuito da NCAA.

"Ao ver o que aconteceu com a Lia, revivi muito o que eu senti no meu primeiro ano aqui no Brasil. Muitas críticas, muitas pessoas me atacando, falando coisas que não sabiam. Diziam que eu segurava o braço, que eu não fazia o meu máximo porque tinha medo, falavam que eu poderia matar uma, que eu era isso, que eu era aquilo... É o caso da Lia".

Só publicaram que a Lia ganhou, mas não postaram quando ela nadou e perdeu para outras mulheres cis. Ela participou de oito provas e ganhou uma. E por ela ter ganhado uma, ela virou um monstro, virou um absurdo no esporte, por parte dessas pessoas que são haters né".

Uma imagem de Lia isolada no pódio após conquistar o título nos EUA viralizou pelo mundo. Apesar disso, Erica Sullivan, uma das meninas que aparece na outra ponta da imagem, disse que o contexto era outro. As outras atletas competiram juntas em Tóquio e quiseram fazer um retrato do reencontro.

"Sempre tem dois lados da história, né. Os haters sempre vão pegar as fotos dela solitária. Mas nessa vida, todos temos momentos de solidão também. Nós vamos beber água e não precisamos ir em grupo, por exemplo. Se ela está concentrada para competir natação, também não precisa estar em grupo, ela nada sozinha", opinou Tifanny.

Roberto Pallu

Comigo já criaram muitas histórias. Falaram que 90% das meninas do vôlei não queriam que eu jogasse, e que elas tinham medo de falar... Eu já escutei que ninguém do time gostava de mim. Ao mesmo tempo, muita gente me defendeu, disse: 'Epa, eu gosto dela, sim, não fale isso não'. Eu posso falar que criei amizades maravilhosas dentro do voleibol. Não é por ser mulher trans que não posso ter amigos e amigas".

Tifanny Abreu

Divulgação

Tifanny relembrou de uma polêmica que surgiu entre ela e Tandara, também atleta do Osasco. Em 2018, a jogadora que está afastada por doping emitiu comentários contra a presença de atletas trans no esporte e, três anos depois, em outubro de 2021, declarou que segue com o mesmo pensamento, mas "respeita a opinião da CBV".

Na época, Tifanny foi em defesa de Tandara e afirmou que a amiga ajudou no processo da transferência ao Osasco, para ambas jogarem juntas. "Se ela fosse tão contra, acho que não me aceitaria no time dela", disse a paraense ao SporTV.

"Já aconteceu muito de tentarem colocar eu e Tandara uma contra a outra. E nós somos muito amigas, de jantar juntas, de ir na casa uma da outra, de compartilhar coisas. Eu não tenho esse ódio da Tandara e ela não tem ódio por mim como muitas pessoas veem. A gente tem uma amizade. Ela tem um pensamento, eu tenho o meu. A gente respeita uma à outra. Não existe esse ódio. Somos amigas e as pessoas não entendem. As pessoas querem ver o circo pegar fogo, não tem jeito", comentou.

Divulgação

De olho na próxima temporada

Tifanny foi contratada pelo Osasco em junho de 2021. A expectativa era que ela e Tandara formassem os dois grandes pilares da equipe na atual temporada. Não deu certo. Nas Olimpíadas de Tóquio no ano passado, Tandara foi flagrada no exame antidoping e está suspensa do esporte por tempo indeterminado. A equipe chegou nas quartas de final, eliminada para o Rio de Janeiro por 3 sets a 1.

"Foi difícil essa temporada. Tiveram partes boas também. Mas foi complicado para nós. Tínhamos a proposta de uma equipe que era para chegar na final, mas tivemos o 'calcanhar de Aquiles' quebrado, que foi a Tandara. Perdemos uma grande força, uma jogadora fenomenal, que era nossa base. Mas tivemos que continuar assim mesmo. Felizmente, a Carla Santos conseguiu segurar toda a temporada, foi uma protagonista. É a melhor sacadora da Superliga. Nós tentamos, nós buscamos... Mas perdemos nas quartas de final para o Rio de Janeiro, e não foi para um time qualquer. Foi um ano de glória e terror ao mesmo tempo", analisou Tifanny, que já projeta a nova temporada.

"Agora, estamos todos juntos por Osasco mais uma vez e vamos para mais um ano de lutas novamente e quem sabe chegar numa final", finalizou.

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