Neymar: o jogador

Às vésperas da Copa, Neymar se aproxima de Pelé em números e já é comparado ao Rei por quem o enfrentou

Eder Traskini e Thiago Arantes Do UOL, em Santos, e colaboração para o UOL, em Barcelona Catherine Steenkeste/Getty Images

Pouco antes das 16h do dia 24 deste mês no gramado do Lusail Iconic Stadium, onze jogadores estarão cantando o hino nacional brasileiro antes da estreia da seleção na Copa do Qatar 2022. No entanto, todos os olhos, não só do Brasil, estarão voltados para um deles em especial: Neymar.

Destinado à grandeza desde a infância - já era nacionalmente conhecido e apontado como promessa aos 12 anos de idade - o camisa 10 se tornou uma figura polarizante fora dos gramados. Dentro das quatro linhas, entretanto, sempre foi incontestável e reina sozinho, desde 2011, como o nome mais talentoso da geração pós-Ronaldo no futebol brasileiro.

Na Copa do Mundo. Neymar começará a dois gols de igualar Pelé e se tornar o maior artilheiro da história da seleção brasileira em jogos oficiais. São 75 gols em 121 jogos, contra 77 gols em 92 partidas do Rei. No Qatar, Neymar também se aproximará de Pelé ao ser o único outro brasileiro a vestir a camisa 10 da seleção em mais de duas copas - serão três, contra quatro do Rei. Com a bola nos pés, o craque do PSG já é comparado por adversários ao maior jogador de todos os tempos.

E é legado, tamanho na história do futebol brasileiro o que representa o torneio do Qatar para o atacante. Se a marca de Pelé o coloca perto do topo em números absolutos com a camisa amarela, a taça da Copa - que, aliás, foi colocada pelo craque como tela de fundo em seu celular - é um requisito fundamental a quem busca um lugar na primeira prateleira da seleção.

Na série especial 'Neymar e o mundo', o UOL Esporte conta a trajetória do camisa 10 da seleção brasileira em três partes: o jogador, a marca bilionária e a pessoa por trás disso tudo. Esta primeira reportagem é sobre o jogador, sua história dentro das quatro linhas, desde o nascimento no Santos, passando pela consagração no Barcelona até se tornar o jogador mais caro do mundo no PSG e maior ícone da seleção.

O ano era 2006. Aos 14 anos, Neymar estava na arquibancada de um estádio muito maior do que a Vila Belmiro, palco que viria a brilhar nos anos que se seguiram: o garoto estava no Santiago Bernabéu, casa do Real Madrid. Por pouco, sua história no futebol não começou ali.

A viagem era parte de um projeto do Real para tirar o Menino da Vila da Baixada Santista antes mesmo da sua profissionalização, mas foi o próprio Neymar que recusou por um motivo que pode parecer bobo hoje, mas que fazia sentido para um garoto de 14 anos: saudade de casa, da escola e dos amigos.

"A gente já estava havia vários dias lá, e na Espanha não tinha esse negócio de arroz e feijão. Falei: 'cara, que dificuldade'. E a gente já não conseguia comer muito as coisas que estavam lá. A comida do hotel era sempre as mesmas coisas: jamón (presunto cru de origem espanhola). Hoje a gente se acostuma com isso, mas naquele momento a gente sentiu muito a falta de arroz e feijão. Eu vi o Neymar cada vez mais debilitado. O cara não comia", lembrou Neymar pai, em entrevista ao UOL Esporte em 2019.

O jovem Neymar escolheu voltar a Santos e dar início a sua carreira na Vila, cercado de expectativa desde que surgiu na base, levado por Lima, antigo companheiro de time de Pelé conhecido como o Coringa da Vila.

"Vi um treino da base da Portuguesa (santista) e fiquei muito entusiasmado com um garoto que estava para completar 12 anos. Comecei a acompanhar os movimentos dele e tinha tudo aquilo que um técnico quer, pegava a bola com muita personalidade e ia para cima dos adversários. Cheguei no Santos e procurei o Zito para trazer o menino para treinar conosco. Como Neymar era muito novo, o Zito sugeriu que fosse aberta uma nova categoria para ele", lembrou.

Neymar tinha a habilidade psicológica que na minha opinião é a mais importante para o atleta, a habilidade de autoconfiança. Além disso, era motivado, participava de todos os trabalhos que eram propostos e tinha facilidade para trabalhar em equipe. Ele, ao meu ver, não só é um talento esportivo (biologicamente falando), como, também, tem a habilidade de tirar o máximo proveito das suas capacidades inatas.

Juliane Fechio, psicóloga do Santos desde a época de Neymar

Durante todo o processo de formação nas categorias de base, os atletas buscam concretizar seus sonhos, mas convivem diariamente com o medo da dispensa, o medo de investirem numa vida de sacrifícios e não conseguir "virar". Os atletas que conseguem ter sucesso no futebol não só são bons tecnicamente, mas também, são capazes de resistir à pressão e ter autodisciplina independentemente da situação.

Juliane Fechio, psicóloga do Santos desde a época de Neymar

O ex-volante Jacó Pitbull tem uma estratégia infalível para fazer amigos e ganhar "um descontinho" nos bares de Feira de Santana-BA. É só mostrar a proteção de tela do celular: uma foto em que ele tenta parar um jovem Neymar, no duelo entre Naviraiense e Santos, na Vila Belmiro, pela Copa do Brasil de 2010. "Eu mostro o celular e todo mundo pergunta: é você mesmo? Você jogou contra o Neymar?"

A lembrança daquele jogo poderia ser triste. Afinal, Jacó foi expulso aos 35 minutos e o Naviraiense perdeu por 10 a 0. Mas o baiano gosta de falar daquela noite em que o Brasil inteiro conheceu o garoto de 18 anos que já brilhava pelo Santos no Campeonato Paulista.

"Ele acabou com o jogo. Eu nunca tinha visto nada parecido, e nunca mais voltei a ver. Pra mim, enfrentar um cara daquele nível foi importante. É a mesma coisa que os jogadores antigos de times pequenos que enfrentaram o Pelé", afirma Jacó. Neymar marcou dois gols, deu duas assistências, driblou, pedalou e apanhou.

"O raciocínio dele é mais rápido. É o mais rápido de todo mundo que está no campo. Então, só tem um jeito de parar: na porrada. Mas às vezes nem assim, porque tem hora que você tenta e não consegue", brinca o ex-jogador, que se orgulha do trabalho feito no primeiro jogo do duelo, em Campo Grande-MS. O Santos venceu apenas por 1 a 0.

Para o jogo de volta, o Naviraiense teve um desfalque importante: Fábio Buru, que fazia dupla com Pitbull no meio-campo. "A gente se chamava de irmão. Eu brinco que um matava e o outro enterrava. No segundo jogo, eu tive que bater sozinho, levei um amarelo por uma falta no Neymar, depois outro", lembra Jacó.

Os minutos em que o volante esteve em campo não deixaram dúvidas sobre o potencial do então camisa 11 santista. "Depois do jogo, na resenha com os colegas, eu falei pra eles: "esse cara ainda vai ser o melhor do mundo". E eu acho que ele ainda vai ser", diz. Na época, Pitbull procurou as fotos do jogo para guardar como lembrança. Uma delas foi parar no fundo de tela do celular, e nunca mais saiu.

Foi perto da bandeira de escanteio da Vila Belmiro que Neymar deu grande parte de seu show. E foi ali que uma discussão que acompanharia o atacante durante toda a carreira começou: qual o limite da irreverência e o início do desrespeito?

Quando a bola chegou pingando para Neymar em uma partida contra o Botafogo-SP, o craque viu Nunes vindo para cima e aplicou um chapéu 'invertido', quicando a bola no gramado, que até hoje é lembrado. Logo depois, novamente marcado pelo atacante, parou e colocou as mãos na cintura antes de voltar a driblar. Aquilo foi suficiente para, mais tarde, Nunes afirmar que "quis quebrar ele inteiro"

Para Maurício Ramos, ex-Palmeiras e um dos zagueiros que mais enfrentou o jovem Neymar, aquela atitude foi desrespeitosa, mas exceção na carreira do camisa 10 da seleção.

"Quando ele tava ganhando ele era abusado, era chato, marrento - na nossa linguagem. Mas é menino, é alegria do futebol que vem das ruas. Ele jamais desrespeitou nós nos clássicos. Contra o Nunes, aí sim ele desrespeitou", contou em entrevista ao UOL.

O defensor não esconde que sofreu para marcar Neymar. "Foi um dos mais difíceis de marcar porque era muito rápido e técnico. Com a bola no pé, era muito difícil ele perder. A mudança de direção dele não tem igual, era impossível saber para que lado ele ia sair".

Quando já tinha o status de maior promessa do Brasil, o jogador protagonizou uma briga com o técnico Dorival Jr por não ter sido autorizado a bater um pênalti. O episódio talvez tenha sido o início de uma discussão que até hoje divide o país: sobre o nível de maturidade de Neymar, frequentemente questionado por torcedores e imprensa.

O Felipão falava: 'não deixa esse demônio desse Neymar chutar'. Mas não tinha como. Ele infernizava. Felipão armava estratégia para marcar ele individual ou fazer a dobra, daqui a pouco ele tirava um drible da cartola ou uma chapada. Era muito diferente. Todo jogo ele fazia chover. Em 2010, ele pegou uma mania que o zagueiro abria a perna e ele fazia o gol por baixo da nossa perna. O Brasil tava muito pequeno pra ele

Maurício Ramos, ex-zagueiro do Palmeiras

Depois de deixar o Santos, Neymar não demorou para chegar ao cume do futebol europeu. A temporada 2014-15, sua segunda no Barcelona, foi histórica e é, por enquanto, o ponto mais alto de sua carreira. O time conseguiu o "Triplete", sendo campeão da Liga Espanhola, Copa do Rei e Champions League e consagrou o ataque com Messi, Neymar e Suárez. O auge daquele time foi a vitória por 3 a 1 sobre a Juventus no Estádio Olímpico de Berlim, na final da Champions.

O time italiano, conhecido por sua defesa sólida, tinha a missão de parar o melhor ataque do mundo, mas acabou superado. Não foi por falta de treino. O brasileiro Rubinho era um dos goleiros do elenco e lembra a rotina de treinamentos nas semanas antes da final. "Assim que foi definido o adversário, começamos a fazer atividades específicas dos goleiros, pensando nos jogadores do Barcelona, especialmente o Messi e o Neymar", lembra.

O foco principal era nas jogadas de 1 x 1. "O preparador sempre falava que, na jogada cara a cara com o Neymar, tínhamos que esperar o máximo possível. Porque ele tem uma leitura do movimento do goleiro que, se você fizer alguma coisa, ele vai saber o que fazer para te superar". A tática é usada até hoje pelo camisa 10 da seleção brasileira em cobranças de pênalti.

O técnico Massimiliano Allegri também trabalhava com foco especial em Neymar e Messi. A primeira recomendação era fechar as linhas de passe para ambos; a segunda, ter um jogador sempre alerta para fazer a cobertura do companheiro mais próximo da bola. Até mesmo entre eles, os jogadores tentavam combinar formas de parar o brasileiro.

"O Lichtsteiner e o Barzagli tentavam coreografar os movimentos no treino. O Barzagli pedia para o Lichtsteiner fechar a diagonal, para que o Neymar ficasse mais perto da lateral; assim, ele poderia chegar na cobertura", conta Rubinho.

O goleiro lembra que, na época, outros companheiros também queriam ajudar a "marcar" o camisa 11. "O Brasil tinha enfrentado a Itália uns anos antes [na Copa das Confederações], e alguns jogadores achavam ele um "mala" e queriam dar uma chegada mais forte".

Em campo, Neymar derrubou todos os treinos. No primeiro gol, ele superou a "coreografia" dos zagueiros e deu o passe para Iniesta encontrar Rakitic livre. No terceiro, no 1 x 1 contra Buffon, venceu um dos grandes goleiros da história, para conquistar seu maior título no futebol europeu.

Eram jogados 42 minutos do segundo tempo, o Barcelona vencia o PSG por 3 a 1 e precisava de um milagre para ir às quartas de final da Champions League 2016-17: marcar mais três gols. Messi andava de cabeça baixa, a torcida já perdia as esperanças, até que uma falta na ponta da área mudou a história. Daquele jogo, daqueles dois times e de Neymar.

A cobrança do brasileiro passou por cima da barreira, entrou no ângulo do goleiro Trapp, e fez o Camp Nou explodir. Os sete minutos seguintes foram mágicos: aos 45, Luis Suárez sofreu um pênalti duvidoso. Neymar pegou a bola, bateu e fez o quinto. No último lance do jogo, o camisa 11 recebeu passe na intermediária, conduziu com três toques curtos e olhou para área, onde sete jogadores -incluindo o goleiro Ter Stegen- esperavam uma bola salvadora. O toque para a linha da pequena área encontrou o pé direito de Sergi Roberto. 6 a 1. O Barcelona havia conseguido o impossível, e Neymar era o grande nome do jogo.

Naquela noite, o brasileiro foi dormir como herói. Finalmente era o protagonista, o dono do time, o jogador que todos os companheiros procuravam na hora da decisão. Só que, no dia seguinte, a foto que ganhou o mundo não foi dele: o fotógrafo mexicano Santiago Garcés capturou a festa de Messi com os torcedores nas arquibancadas. O argentino, que praticamente não tocou na bola nos minutos finais, tornou-se o símbolo da vitória. Ali, segundo pessoas próximas a Neymar, o brasileiro começou a deixar o clube catalão.

Na mesma noite, durante um tardio jantar em uma mansão em Barcelona, o presidente do PSG, Nasser al-Khelaifi, fez uma promessa a seus comensais: iria transformar o clube no maior do mundo, e o primeiro passo seria contratar Neymar. Nos meses seguintes, o desejo do dirigente e a insatisfação do brasileiro se encontraram, e o resultado foi a maior contratação da história do futebol: 222 milhões de euros.

No PSG, Neymar passou a colecionar títulos franceses, mas não conseguiu repetir a conquista da Champions. Na França, encontrou seu maior adversário no fantasma das lesões. Quinto metatarso. Vértebra L3 da coluna lombar. Mesmo o torcedor mais alheio à medicina aprendeu, acompanhando o camisa 10, onde se localizam as duas partes do corpo humano.

As duas lesões afetaram também seu desempenho em Copas do Mundo. A pancada nas costas o tirou da semifinal do mundial de 2014 - que terminou no fatídico 7 a 1 para a Alemanha. Quatro anos mais tarde, Neymar fraturou o quinto metatarso e só voltou aos gramados às vésperas da Copa da Rússia, onde não esteve 100%.

"O Neymar me falou depois daquele jogo contra a Bélgica. 'Professor, se eu estivesse bem, a gente empatava'. Ele vinha em um processo de recuperação e tinha consciência da importância dele na seleção", revelaria Tite anos depois.

Até o início da temporada 2022/23, Neymar somava seis lesões e seis meses longe dos gramados desde 2020. Tal número era inimaginável quando ele iniciou a carreira. No Santos, Neymar jogava todas as partidas, servia à seleção brasileira e retornava rapidamente de jatinho para atuar pelo Peixe. A palavra lesão não fazia parte de seu vocabulário na época.

"Neymar tinha um biotipo muito magro, com pouco tecido adiposo e pouca massa muscular na época. Realmente, ele não se machucava, chegou a ficar um ano sem ter uma gripe, sequer, sem pisar no DM. Ele já vinha habituado a ser protagonista no juvenil e acostumado a jogar. Só que no profissional ele começou a sofrer mais marcação, mais faltas e contra adversários muito mais pesados e fortes", afirmou o dr. Rodrigo Zogaib, médico do Santos na época em que Neymar jogava no clube.

Nesse cenário, com um biotipo magro, apelidado por Vanderlei Luxemburgo de 'filé de borboleta', e apanhando bastante de adversários mais fortes, Neymar desenvolveu uma técnica de saltar antes da pancada, o que acabaria marcando sua carreira e até hoje o faz lutar contra a fama de 'cai-cai'.

"A forma dele de cair, sem dúvida, faz parte do baixo índice de lesão. Ele aprendeu essa técnica de biomecânica. Em traumas diretos, se você perder o contato com o chão quando você leva um chute, o seu pé vai fazer o movimento sem estar fixo no chão. Então, a chance de ter uma contusão mais forte é muito menor. Quando ele via que vinham forte na disputa de bola, ele tirava o pé do chão, pulava. Como ele era leve, levantavam ele toda hora. E aí, maldosamente, falavam que ele era cai-cai e tal", explicou Zogaib.

Neymar talvez viva o melhor momento dele no sentido de um equilíbrio profissional completo. É um jogador que tecnicamente não precisamos pontuar suas muitas qualidades. É desses grandes jogadores que fazem a diferença, que são de um nível excepcional. Não tenho dúvidas que fará uma grande Copa do Mundo, já que chega para um momento que de repente ele consiga confirmar tudo aquilo que dele se espera

Dorival Júnior, ex-treinador de Neymar

Maracanã pulsava. Enlouquecida, a torcida brasileira ainda comemorava a defesa de Weverton no último pênalti batido pela Alemanha na final das Olimpíadas do Rio de Janeiro 2016 quando viu Neymar caminhando para a cobrança final.

Aos 24 anos, o camisa 10 da seleção brasileira pensou: "fudeu" - como revelou no documentário 'Neymar, o Caos Perfeito'. Nos pés do atacante estava a melhor oportunidade da carreira de escrever seu nome na história do país conquistando a inédita medalha de ouro.

De "grandão", o goleiro Horn se tornou "muito pequeno" e o pênalti de Neymar encontrou as redes alemãs. Com a medalha de ouro no peito, o craque não deixou de provocar em entrevista na saída do gramado: "fazer o quê? Agora vão ter que me engolir", disse rindo.

A Copa de 2022 será a terceira de Neymar e talvez a última oportunidade de deixar um legado à altura de seus números com a amarelinha. O camisa 10 está a dois gols de igualar Pelé como maior artilheiro da história da seleção em jogos oficiais e só fica atrás do Rei do futebol também em assistências: 64 contra 57.

Os números individuais, no entanto, não o colocarão no degrau que o talento que já demonstrou em campo sugere. Para isso, somente aquele objeto pode acabar com qualquer discussão: a taça da Copa do Mundo.

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