O resgate da amarelinha

Como membros do movimento negro, rappers e moradores da periferia tentam ressignificar a camisa da seleção

Adriano Wilkson Do UOL, em São Paulo Lucas Figueiredo/CBF

O tempo fechou quando um grupo de pessoas vestidas com a camisa amarela da seleção brasileira se posicionou em um palco no estádio do Mineirão em Belo Horizonte em meados de abril passado. As nuvens escuras no céu e as capas de chuva que cobriam boa parte da plateia anunciavam um clima pesado.

Mas quando o estudante de história Gustavo Pereira Marques, o Djonga, apareceu no palco, empunhando o microfone, o público logo entendeu o recado. Ele também vestia a camisa principal da seleção, modelo novo.

"Com essa camisa aqui é mais gostoso ouvir vocês dizerem isso", afirmou Djonga, enquanto seu público fazia um protesto contra o presidente Jair Bolsonaro. "O cara acha que tudo é deles. Ele se apropria do tema família, ele se apropria dos nossos símbolos. Os caras se apropria de tudo. Mas é o seguinte: é tudo nosso e nada é deles."

Nascido na Favela do Índio e criado na zona leste de Belo Horizonte, Djonga é considerado aos 27 anos um dos nomes mais influentes do rap nacional. Suas letras falam da vida marginalizada, de racismo e violência policial. Não é o tipo de pessoal que a gente normalmente veria vestir com orgulho a camisa da Confederação Brasileira de Futebol, ultimamente mais presente nos protestos de rua a favor do governo e contra a ciência e a democracia.

O figurino que Djonga e seus dançarinos usaram na entrada do Breve Festival, assim como seu discurso, lançou luz a um movimento que vem crescendo dentro do hip hop e do ativismo negro e periférico: a tentativa de resgatar e dar novo significado às cores da bandeira nacional e, especificamente, à camisa amarela da seleção brasileira, identificada nos últimos anos com os apoiadores do presidente Bolsonaro.

Em 2022, esse debate promete esquentar. Em outubro, o país viverá as eleições mais importantes desde a redemocratização. Em novembro e dezembro, a seleção brasileira estará em campo na Copa do Qatar. Será então possível sair à rua com a camisa amarela sem ser confundido com um militante de extrema direita?

Lucas Figueiredo/CBF
Divulgação Djonga, rapper mineiro, se apresentou no Breve Festival com a camisa da seleção

Djonga, rapper mineiro, se apresentou no Breve Festival com a camisa da seleção

Arquivo pessoal
O autor torcendo pelo Brasil durante a Copa de 1990

A primeira Copa

Em junho 1990, eu não tinha completado nem dois anos quando iniciei um ritual que se repetiria ao longo de toda a minha infância e adolescência. Meus pais me meteram numa camiseta amarela, num calção verde, me vestiram mini meiões brancos e chuteiras infantis pretas. Eu era um bebê-jogador de futebol e saía pelas ruas de Belém-PA tropeçando nas próprias pernas e balançando minha pequena bandeira do Brasil, porque era mês de Copa do Mundo e a vida era isso.

A rua toda se pintava, as casas se decoravam e as bandeirolas verde-amarelas brilhavam sob o sol quente o mês inteiro. Eu não lembro de Maradona driblando metade do time brasileiro e tocando pra Caniggia despachar o time de Lazaroni de volta pra casa, mas quatro anos depois eu estava de novo com a camisa amarela, vivendo de fato minha primeira Copa. Foi vestido "de Brasil" que vi Baggio chutar pro alto aquele pênalti e imitei os adultos pulando e se abraçando, numa explosão de histeria e felicidade. Nós éramos crianças e "ser campeão do mundo", pra gente, significava no máximo ter mais tempo pra brincar na rua, porque a festa dos adultos, naquele dia, não tinha hora pra acabar.

De verde e amarelo, chorei quando Ronaldo, meu primeiro herói do futebol, foi derrubado pelo goleiro Barthez em Paris (achei que ele ia morrer!) e chorei de novo quando, quatro anos depois, ele deixou no chão o goleiro Oliver Kahn. Kahn tinha sido eleito o melhor jogador da Copa de 2002, mas 2002 era o ano do Ronaldo. E do Rivaldo, e do Ronaldinho tocando pandeiro no Japão. Era muito bom ser brasileiro. E era muito bom usar a camisa amarela da seleção, a única com as cinco estrelas acima do escudo.

Reprodução Trecho do clipe "Gueto", em que Iza homenageia o bairro de Olaria, no Rio

Trecho do clipe "Gueto", em que Iza homenageia o bairro de Olaria, no Rio

Minha lembrança do gueto é a Copa do Mundo, quando as pessoas fazem aquelas bandeiras na rua [...] Nossa bandeira é linda, e é nossa, orgulho de onde viemos. O Brasil é feito de brasileiros, nosso país é foda, está ferrado, mas é foda. E construído por nós. Temos que ter orgulho.

Iza, cantora carioca, em entrevista ao Glamourama

Divulgação

Mas hoje as coisas mudaram. "Não vejo ninguém andando na rua com essa camisa por aqui", diz Jhennifer Rodrigues, a Jheni MC, rapper de São Miguel Paulista na periferia de São Paulo. "Se alguém aparecer com ela, certeza que vai ser confundido com um bolsonarista." Aos 23 anos, ela tenta há três emplacar uma carreira musical. No começo do ano, incomodada com o sequestro das cores nacionais pela extrema direita, ela teve uma ideia diferente para o clipe do single "Pau no c*".

A letra da música faz uma defesa das liberdades de escolha das mulheres negras. "Se eu quero meu cabelo black, se eu quero cantar meu rap, se eu quero fumar meu beck... deixa eu, deixa eu."

A cantora e suas amigas aparecem no clipe com a camisa da seleção na Av. Paulista, tradicional ponto de encontro de manifestações políticas.

"O Djonga é a minha maior referência no rap", conta Jheni, "e eu fiquei muito empolgada quando ele fez aquele discurso em favor da camisa do Brasil. São as nossas cores, os nossos símbolos, e eu tenho certeza que com a força dele e de outros artistas que têm voz vamos conseguir recuperar isso."

Divulgação/Twitter @Coachella

As cores de Anitta

Um grupo de dançarinas esperava ao redor de uma mesa de bilhar no palco do Coachella, o maior festival de música pop do mundo, em abril nos EUA, quando a cantora Anitta fez sua entrada na garupa de uma moto. O público não deixou de notar que o figurino escolhido também fez parte de uma mensagem. Com o top e o short com detalhes em verde, amarelo e azul, a carioca cantou e dançou em um cenário que lembrava uma favela.

Anitta verbalizou a crítica no Twitter no mesmo dia. "A bandeira do Brasil e as cores da bandeira do Brasil pertencem aos BRASILEIROS. Representam o BRASIL em GERAL. NINGUÉM pode se apropriar do significado das cores da bandeira do nosso país. Fim", escreveu ela, uma das mais celebridades que mais antagoniza com Bolsonaro, seus filhos, ministros e secretários nas redes sociais. No mesmo dia, a conta do presidente Bolsonaro republicou o texto: "Concordo com a Anitta", seguido de várias bandeiras brasileiras e um joinha.

Se é certo que ninguém pode se apropriar das cores da bandeira brasileira, também é certo que a bandeira brasileira se apropriou das cores de outras bandeiras. Quando o pintor Jean Baptiste Debret foi chamado a esboçar a flâmula nacional, logo depois da Independência, as cores já estavam escolhidas de antemão, em homenagem às duas casas imperiais que deram origem à monarquia brasileira - verde dos Bragança e amarelo dos Habsburgo, de onde vinha Maria Leopoldina, esposa de D. Pedro 1º. A bandeira republicana que usamos hoje foi inspirada nesse primeiro símbolo imperial.

Mais de um século depois, o verde e o amarelo foram parar também no uniforme que os brasileiros usam para jogar futebol, mas não sem uma boa dose de drama, suor e lágrimas. Até 1950, o Brasil jogava de branco, mas a derrota em casa na Copa e todo o drama que se seguiu levaram os dirigentes a encomendar um novo uniforme, para substituir o anterior, "azarado". A nova camisa construiu a história do futebol brasileiro.

Foi vestindo uma combinação de azul e amarelo que Pelé venceu a primeira Copa, aos 17 anos. Foi de amarelo e azul que as pernas tortas de Garrincha ganharam a segunda. De amarelo estavam vestidos os tricampeões de 70, o melhor time de futebol que já existiu. De amarelo, Dunga levantou a quarta taça na Califórnia, sob um sol escaldante, soltando um palavrão. E de amarelo, Cafu ergueu a quinta em Yokohama, soltando um "eu te amo".

Era uma história de amor a relação do Brasil com a camisa amarela. Até que deixou de ser.

"Ah, garoto, vai catar o que fazer, vai", respondeu Anitta, ao saber da concordância irônica do presidente à sua defesa do resgate das cores nacionais. Se antes o verde e amarelo uniam o país ao menos de quatro em anos, hoje se tornaram as cores da discórdia.

Fernando Donasci/Folhapress

Acabou o amor?

Nem tanto. A lembrança dos mutirões para pintar as ruas da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, permanecem na memória do designer Lucas Rodrigues, de 27 anos. Em época de Copa, adultos e crianças se reuniam pra cortar bandeirinhas e desenhar mascotes no asfalto e nas fachadas das casas.

Lucas gostava particularmente de desenhar o escudo da CBF. Ao se formar designer, conseguiu um emprego na agência Ana Couto Branding, escolhida pela confederação para renovar sua marca. Lucas fez parte da equipe que revigorou o escudo. As mudanças foram sutis, e desde 2019 a seleção ostenta no peito um escudo com traços mais leves e modernos.

Lucas diz que ele e seus amigos da Brasilândia nunca deixaram de usar e ter orgulho da camisa da seleção. A apropriação dela pelos movimentos de direita não mudou esse sentimento?

Acho justamente o contrário. As pessoas que eu conheço na Brasilândia sempre tiveram orgulho da camisa, e de uns tempos pra cá passaram a usar não só em contexto esportivos, mas pra sair à noite, ir ao baile. A quebrada tem muita ligação com camisas de time, e com a camisa da seleção também.

Lucas Rodrigues, designer da Brasilândia em São Paulo

Divulgação

"A camiseta amarela nunca deixou de ser usada nas periferias", afirma o diretor criativo e stylist Samir Bertoli, que se considera marxista-autonomista e vive no Jardim Líbano, em Pirituba, zona norte de São Paulo. "Essa associação [com a direita] só acontece nos ambientes mais elitizados. Nas quebradas ainda continua a ser uma camiseta com poder de elevar a sua autoestima."

No ano passado, lembrando da tradição dos times de várzea de escrever frases em seus uniformes, ele mandou pintar nas costas de sua camiseta do Brasil o trecho da música "Vida Loka", uma das mais conhecidas dos Racionais, que faz menção a São Dimas, crucificado ao lado de Jesus, e considerado o "primeiro vida loka da história".

Adriano Vizoni/Folhapress Adriano Vizoni/Folhapress

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