O harém do príncipe

Como funcionava a suposta rede de aliciamento, prostituição e abusos de Saul Klein

Pedro Lopes Do UOL, em São Paulo Arquivo pessoal

Eram 10h da manhã de 5 de novembro de 2019, uma terça-feira, quando a reportagem do UOL Esporte chegou a um condomínio de luxo em Alphaville, na região metropolitana de São Paulo, para uma conversa com Saul Klein, 66. O filho de Samuel Klein, fundador das Casas Bahia, é conhecido no meio do futebol pelos investimentos no histórico São Caetano vice-campeão brasileiro de 2000 e, atualmente, na Ferroviária, time da primeira divisão do Campeonato Paulista. O assunto do encontro foi seu investimento no futebol e a relação com o clube do ABC.

Logo na entrada do condomínio, a reportagem foi orientada a seguir um carro com seguranças até uma mansão. Na porta da residência, mais três homens faziam a segurança. Um deles conduziu a equipe até uma sala. Repousavam em uma mesa petiscos variados e água mineral da marca francesa Evian. "O patrão está no banho, já vai descer", informou o segurança.

Foram alguns minutos até que os primeiros passos em uma escada a poucos metros dali se tornassem audíveis, e Klein, em trajes extremamente casuais, se aproximasse. No caminho, ele passou por alguns dos vários funcionários - quase todos homens - que ocupavam a residência. E sempre ouvia em boa altura: "bom dia, patrão".

A casa em que a reportagem foi recebida por Klein tem vários dos cômodos apontados para uma piscina, estrutura propícia à realização de grandes festas. Na sala onde ocorreu a reunião, havia uma pilha com dezenas de DVDs piratas. O aparente forte esquema de segurança e o uso prolífico da palavra "patrão" davam o tom da atmosfera regida pela subordinação ao chefe de Estado que comandava aquela monarquia. Em certo momento, um mero aceno de mão foi suficiente para que um dos funcionários viesse rapidamente anotar um número de telefone.

O aparato de segurança, os DVDs piratas e a própria construção da casa, meras peculiaridades ao primeiro olhar, viriam a ser elementos que compunham um suposto esquema de aliciamento, prostituição e abusos de mulheres. Em uma investigação que começou pelo clima particular de um encontro para tratar de futebol e se estendeu por quase um ano, a reportagem do UOL Esporte obteve detalhes de como funcionava a rotina de dezenas de mulheres que passavam de quinta a domingo nas propriedades do bilionário.

Arquivo pessoal

Sexo e aulas de piano

Como revelado na última terça-feira pela coluna da jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo, 14 mulheres denunciaram o filho do fundador das casas Bahia ao Ministério Público por estupro e aliciamento.

O empresário está com o passaporte retido pela Justiça e impedido de contatar as 14 supostas vítimas. Klein se defende, através de seu advogado André Boiani e Azevedo, afirmando que era um "sugar daddy", termo que designa homens mais velhos que têm o fetiche de sustentar financeiramente mulheres mais novas em troca de afeto e/ou relações sexuais.

Segundo a defesa, o empresário contratava uma empresa para agenciar mulheres para suas festas e está sendo "vítima de um elaborado esquema de extorsão depois de cessar a contratação dela".

"Relações consensuais sacramentadas de acordo com as regras do reconhecido relacionamento 'sugar' efetivamente foram praticadas pelo Sr. Saul Klein. A frequência repetitiva das modelos, que livremente frequentaram eventos do Sr. Saul Klein por meses ou anos, se constitui em óbvia prova do consentimento dos relacionamentos, que se tornaram conflituosos exclusivamente na versão fraudulenta levada ao conhecimento do Ministério Público, tudo por conta de interesses patrimoniais inconfessáveis que certamente serão trazidos à tona durante o desenrolar da investigação policial", diz nota enviada à reportagem.

As mulheres relatam que eram submetidas a controle de peso, pressionadas por terceiros a realizarem procedimentos estéticos e a manter relações sexuais com Klein, sempre sem o uso de preservativos, mediante remuneração de R$ 3 mil a R$ 4 mil por semana.

A rotina era complementada por uma série de exigências especiais, como aulas de piano, balé, debates e até performances teatrais dos filmes contidos nos DVDs. A reportagem apurou que pelo menos duas mulheres que frequentaram a residência de Klein tiveram problemas de saúde e transtornos psicológicos.

Pelo menos três garotas assinaram contratos de R$ 800 mil comprometendo-se a ficar em silêncio. O empresário alegou na Justiça que um dos acordos foi fechado sem a sua autorização, e conseguiu provar, através de perícia, que a sua assinatura era falsa. Os outros teriam sido assinados mediante ameaça de divulgação de fotos íntimas.

Leticia Moreira/ Folhapress

O "teste com o príncipe"

Poucos meses depois de completar 18 anos, J. (nomes e datas não são mencionados para preservar a identidade da depoente) acreditava que sua sonhada carreira como modelo e promotora de eventos ia decolar: havia surgido uma oportunidade de fazer um teste para trabalhar com uma renomada e multinacional rede de supermercados.

A animação deu lugar à decepção quando a jovem estudante foi comunicada de que não tinha sido aprovada. J. afirma que as pessoas responsáveis pelo teste ofereceram uma alternativa, que resultaria em remuneração bastante superior ao emprego original: realizar o que chamavam de "teste com o príncipe". Vinda de outro estado para São Paulo em busca de oportunidades, a estudante aceitou.

O teste, relata, teria sido um encontro na casa de Klein, no qual o empresário lhe fez 22 perguntas, alertando que deveria escolher as respostas corretas. J. narra ter sido induzida, pela primeira vez, a realizar atos sexuais com o filho do fundador das Casas Bahia. Aprovada, afirma ter passado a integrar um grupo de mulheres que viviam na residência de quinta a domingo e seguiam um cronograma estrito e cheio de particularidades.

Klein, por meio de seus advogados, afirma que conhecia as mulheres de diversas formas, mas, principalmente, através de uma agência especializada em recrutar mulheres para empresários com o fetiche "sugar daddy". Ele nega a realização de algum tipo de teste sexual e, diz que quando escolhia mulheres indicadas pela agência, o fazia por fotografias.

"Em termos simples, 'sugar daddy' é o indivíduo que se satisfaz por suprir de maneira habitual e ostensiva as necessidades e os caprichos materiais de mulheres que se apresentam como 'sugar babies'. O contato inicial entre 'daddies' e 'babies' se dá das mais variadas formas: por apresentação de amigos, por indicação de outros participantes desse hábito social, por agenciamento e até mesmo por exposição de perfis em websites especialmente dedicados ao tema", diz a nota da defesa enviada à reportagem.

J. afirma que nunca foi coagida mediante ameaça de violência física a fazer sexo, mas desenvolveu repulsa às relações e sofria pressão psicológica de pessoas encarregadas de comandar o suposto esquema, agravada pelo poder financeiro vultoso de Klein, e seu forte aparato de segurança. A jovem desenvolveu estresse pós-traumático, transtornos alimentares - a reportagem teve acesso a laudos médicos e psiquiátricos que confirmam isso. Ela é uma das mulheres que dizem ter sido vítimas do esquema.

"Sem peito e sem bunda"

O UOL Esporte ouviu ou teve acesso a relatos detalhados de cinco pessoas envolvidas diretamente no esquema, e as narrativas convergem para uma rotina com seis a 30 mulheres ocupando as propriedades de Saul Klein em diversos momentos entre 2008 e 2018, e sendo submetidas a uma série de exigências nada usuais.

O modus operandi de recrutamento do esquema era o mesmo ao qual J. conta ter sido submetida: um teste falso, para uma possível campanha como modelo ou promotora de redes de varejo ou supermercados, com reprovação e proposta do "teste com o príncipe" como alternativa.

Os relatos à reportagem apontam que entre 15 e 20 mulheres eram convocadas à residência do empresário entre quinta-feira e domingo, toda semana. A remuneração pelo período era entre R$ 3 mil e 4 mil reais, com acréscimos por cada dia de permanência a mais.

Durante a estadia, era obrigatório que todas se apresentassem pontualmente para as três refeições e vestissem roupas sensuais determinadas pelo anfitrião - uso de minissaias era requisitado. A orientação era para que se referissem a Klein por termos como "príncipe", "amor" ou o apelido "Zinho".

As mulheres eram pressionadas a se enquadrarem em um perfil cultural, fazendo aulas de balé, canto, lendo determinados livros escolhidos pelo empresário, assistindo aos vários DVDs piratas e encenando ou debatendo depois com Klein.

A ordem era para que houvesse controle rígido do peso e submissão a uma série de tratamentos estéticos e médicos, que variavam de idas ao salão de beleza a intervenções com cirurgião plástico, sempre realizadas em uma das propriedades do empresário. O biótipo preferido era de mulheres magras e jovem, "sem peito e sem bunda", na descrição de uma das mulheres que denuncia o esquema.

A defesa de Klein afirma que as práticas são naturais nas relações "sugar daddy" e que os procedimentos eram presentes, parte do fetiche. "Nesse campo de exercício regular de direito, o Sr. Saul Klein por anos celebrou festas periódicas das quais participaram diversas mulheres com as quais mantinha laços 'daddy-baby'. O maior deleite do Sr. Saul Klein nesses encontros vinha da interação pura e simples com moças interessantes e bonitas - conversas, jogos, danças, leituras, compartilhamento de experiências ligadas à arte e à gastronomia etc. Essa era a fantasia dele: estar cercado de mulheres agradáveis, com quem pudesse livremente passar horas de prazer mental e físico", diz.

À noite, a rotina dava lugar a festas, que tinham no anfitrião o único participante do sexo masculino, das quais as mulheres participavam obrigatoriamente em trajes de banho ou nuas, e eram estimuladas a manterem relações sexuais entre si. Algumas eram selecionadas para a prática de atos sexuais com o empresário - havia um rol de preferidas que eram escolhidas com frequência, sempre mais de uma. Relatos de mulheres que frequentavam a residência de Klein dizem que ele tinha predileção por sexo anal, se incomodava com qualquer expressão de dor e realizava todos os atos sem a utilização de preservativo.

À reportagem, as mulheres não citaram ameaças ou emprego de violência física para forçá-las a atos sexuais. Os relatos são de pressão psicológica feita por encarregados de manter o suposto esquema, lembrando os valores já gastos pelo empresário com as garotas e avisando a quem se recusasse que teria que deixar o local e nunca mais retornar - a essa altura, várias das mulheres eram financeiramente dependentes da situação. Essas conversas, por vezes, aconteciam em meio a presença de seguranças.

Os advogados do empresário não negam que tenha havido relações sexuais, mas afirmam que elas nem sempre ocorriam e, sempre que existiram, foram consensuais.

Nessas festas poderiam, ou não, ocorrer relações sexuais, sendo comum que tais eventos se esgotassem apenas em divertimento não-sexual. Quando ocorreram, porém, foram absolutamente consensuais, afinal, os participantes eram maiores, desimpedidos, e estavam ali de livre e espontânea vontade - e, saliente-se, todas queriam voltar aos eventos, em franca demonstração de que estavam de acordo com o que ali acontecia.

Em alguns finais de semana, as festas eram transportadas para um luxuoso sítio no interior de São Paulo, apelidado de "o Spa" pelas mulheres. Ali, o número de garotas dobrava, e cerca de 30 participavam dos eventos. O uso de telefones celulares ou qualquer tipo de contato com terceiros no mundo exterior era, segundo as mulheres, estritamente proibido (o empresário contesta essa versão). De segunda a quarta, apenas cinco ou seis mulheres permaneciam nas propriedades de Klein.

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Doenças e suicídio

A peça apresentada pelo MP à Justiça de Barueri aponta que diversas mulheres teriam adoecido devido aos maus tratos sofridos. "Em razão da constante exploração, da dependência econômica, do subjugo físico e da intimidação moral, muitas mulheres adoeceram e uma delas chegou a se suicidar", diz despacho da Justiça que acolheu pedido do MP para reter passaporte do empresário.

A defesa de Klein afirma que o filho do fundador das Casas Bahia apenas contratava uma agência para recrutar modelos para festas e eventos em suas propriedades e que jamais manteve com nenhuma delas relações não consensuais.

"A verdade é que o Sr. Saul Klein se encontra, mais uma vez, na posição de vítima de falsas e criminosas acusações. Precedentes tentativas frustradas de várias das 'denunciantes' nas áreas cível e trabalhista comprovam a farsa ora em marcha, que muito impacta a integridade moral e o prestígio social dele."

As mulheres ouvidas pela reportagem confirmam que não foram forçadas à prática de atos sexuais e que elas não eram obrigadas a ir às propriedades de Klein. O que ocorria, segundo elas, era um cenário de pressão e dependência psicológica diante de um homem com enorme poder financeiro e um aparato constituído para manter e preservar o esquema.

Nesses eventos, que podiam contar com 15 a 30 moças, elas tinham que exibir o tempo todo de biquíni e submeter-se a atividades sexuais com o requerido Saul, inclusive de modo humilhante e a contragosto. Também podiam ter que ingerir droga, permanecer trancadas em um quarto por um dia inteiro e aceitar se submeter a consultas com médicos ginecologista e cirurgião plástico, respectivamente, para cuidar das persistentes e reiteradas doenças sexualmente transmissíveis que as acometia e de outras enfermidades que apresentaram, bem como receber aplicações de botox ou outros tratamentos destinados a prepará-las para as sessões com o requerido Saul".

Trecho da peça apresentada pelo MP à Justiça de Barueri

Celulares confiscados

Através de um conjunto de processos judiciais em andamento em várias varas da Justiça Cível e da Justiça trabalhista e depoimentos, é possível construir um organograma da vida na mansão Klein.

As mulheres vinham de fora de São Paulo, muito jovens e em busca de oportunidade profissional. Elas afirmam que acabavam seduzidas pela promessa de dinheiro, presentes e chances de crescimento na vida. Quando pensavam em sair do círculo, já estavam financeiramente e psicologicamente dependentes do esquema, sem experiência profissional e sem caminhos para buscar outras alternativas.

Três mulheres seriam as responsáveis pela manutenção do suposto esquema. Elas faziam pressão e ameaças às garotas que recusassem qualquer ato que lhes era solicitado enquanto estavam com Kein. Durante os eventos, que duravam vários dias, a orientação é para que não houvesse uso de celulares nem contato com o mundo exterior.

A defesa de Saul Klein não nega que celulares poderiam ser recolhidos, mas alega que as mulheres poderiam deixar os eventos a qualquer momento, e que várias delas retornavam por anos. Além disso, afirma que, caso pedissem ou precisassem dos telefones, as mulheres poderiam tê-los de volta.

O Sr. Saul Klein nunca obrigou qualquer pessoa a participar de seus eventos. As mulheres que frequentavam seus eventos sabiam que não poderiam registrar imagens e que, por isso, seus celulares seriam recolhidos ao ingressarem no local, mas também sabiam como recuperá-lo a qualquer momento que quisessem - já que poderiam sair do local quando bem desejassem. Totalmente absurda qualquer afirmação em contrário, já que as frequentadoras, repita-se, saíam quando queriam e, principalmente, voltavam com frequência para novos eventos, muitas vezes fazendo isso ao longo de anos, o que, por si só, já se mostra uma incoerência insuperável".

André Boiani e Azevedo, advogado de Saul Klein

O organograma do esquema

Uma mulher chamada Marta da Silva é apontada como a chefe responsável pelo recrutamento e aplicação das regras para as "babies". Marta é proprietária da Avlis Eventos, que a defesa de Saul Klein diz ser a agência contratada para oferecer as modelos para suas festas. Uma sentença judicial em um processo cível, movido por uma das vítimas e que corre em segredo de Justiça, reconhece Marta como "agenciadora de acompanhantes".

"É certo que as moças foram contratadas como acompanhantes do embargante (Klein) e eram agenciadas e pagas por Marta", diz um trecho da decisão, proferida na comarca de Barueri. "(A testemunha) relatou que Marta era quem organizava e pagava tudo. Relatou também que Marta prestava esses serviços para muitos outros empresários do Morumbi, Tatuapé, Campinas".

Klein confirma que contratou a agência de Marta. "Antes de a relação "sugar" ser tão difundida e de existirem "sites" especializados na internet, era comum que os interessados em tal tipo de relacionamento se conhecessem por meio de agenciadores especializados. Foi assim que o Sr. Saul Klein foi apresentado, no final dos anos 2000, à empresa de propriedade da Sra. M. (lembre-se que a investigação tramita em segredo de justiça), que se responsabilizava por todas as questões operacionais dos eventos, como contratação, pagamento e transporte das modelos, além de decoração, alimentos, bebidas, garçons, músicos etc", afirma, através de seus advogados.

"Assim, o Sr. Saul Klein contratava a empresa da Sra. M. para que organizasse as festas e selecionasse modelos que estivessem dispostas a conhecê-lo e a participar de seu evento. Havendo afinidade, poderia daí surgir uma relação "daddy-baby". Repita-se: todas as moças com quem o Sr. Saul Klein eventualmente manteve relacionamento o fizeram por opção própria, em razão de terem tido afinidade com ele, e não em virtude de terem recebido dele qualquer valor para isso ou de terem sido, de qualquer modo, subjugadas ou intimidadas por ele", continua.

Ao lado de Marta, trabalhavam duas mulheres: Ana Paula, apelidada de Banana, e Andreia, conhecida como Deia. Mulheres ouvidas pela reportagem dizem que elas foram as responsáveis pelo recrutamento, e faziam pressão para que as mulheres fizessem, durante o período em que estivessem com Klein, tudo que lhes era determinado.

Havia ainda pelo menos quatro motoristas/seguranças, que atendiam pelos nomes Júnior, Carlos, Diego, Rodrigo e Edgar. Ana Paula, Marta e pelo menos dois motoristas movem contra Saul Klein processos na Justiça do Trabalho. Há outras ações em segredo de Justiça movidas por outros funcionários.

A reportagem teve acesso a processos e depoimentos dos funcionários à Justiça. Marta e Ana Paula são vagas em suas ações e não dão detalhes sobre exatamente qual a natureza dos serviços que prestavam a Klein - definem-se como governantas. O próprio empresário, ao se defender, aponta que Marta trabalhava no agenciamento de modelos para festas e eventos.

Depoimentos dos motoristas confirmam que parte do trabalho deles era levar e trazer mulheres jovens para as propriedades de Klein. Todos recebiam em dinheiro vivo, de Marta, sem registro em carteira, e respondiam a um chefe, chamado de Júnior. O empresário nega a existência de qualquer vínculo com eles.

A reportagem também tentou contato com a defesa de Marta e da Avlis Eventos por telefone e e-mail, mas não obteve resposta até a publicação da matéria.

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"Mentem para si mesmas"

Em 2018, uma das mulheres que frequentavam a casa de Saul Klein chegou ao limite. Depois de deixar as propriedades do empresário em uma segunda-feira, não retornou na quinta, quando convocada. Nas semanas que se seguiram, desenvolveu transtorno alimentar e passou a ter crises de pânico.

Ao ouvir da filha sobre a raiz dos problemas, a mãe da garota entrou em contato com Ana Paula, apontada como uma das mantenedoras do esquema. O UOL Esporte teve acesso a essa troca de mensagens.

No diálogo, a mãe relata a Ana Paula que a filha está sofrendo com transtorno alimentar e traumas psicológicos. Em resposta, Ana Paula afirma que "pessoas como ela manipulam a si mesma, mentem para si mesmas".

Ao longo da conversa, Ana Paula admite que as mulheres praticam atos sexuais com Klein e sustenta que todas estão lá pela própria vontade e estão livres para abandonarem o esquema. Em outra passagem, a mãe da vítima diz que a filha foi hospitalizada com crises de pânico. Ana Paula responde citando Klein: "se ele tem muito dinheiro hoje é porque trabalhou muito a vida inteira. Na idade dela não tinha tempo para pânico. Fez três faculdades. Suou a camisa ao lado do pai".

A reportagem ainda teve acesso a relatórios médicos de uma das vítimas afirmando a existência de sequelas psicológicas e a diversas prescrições de antibióticos para tratamento de doenças sexualmente transmissíveis contraídas por uma garota.

Acordos por silêncio 

Representantes e advogados dizendo agir em nome de Saul Klein assinaram contratos com pelo menos três mulheres que deixaram de fazer parte do suposto esquema. O UOL Esporte teve acesso a três desses contratos: cada um deles prevê o pagamento de R$ 800 mil a uma suposta vítima em troca do silêncio e da renúncia a qualquer ação legal futura. Nos documentos, as mulheres são descritas como "cuidadora" ou "modelo e cuidadora". O empresário conseguiu provar à Justiça, através de perícia, que a assinatura em um dos contratos não é a sua. Os outros dois teriam sido assinados mediante ameaça, segundo a defesa.

Os contratos admitidos contêm cláusulas específicas que tratam de confidencialidade, e preveem indenização por anos morais que cobrem assédio. "Pagamento de indenização por danos morais originados por qualquer motivo, inclusive assédio, no valor de R$ 100.000", diz parte da cláusula 7ª.

"O segundo transigente (suposta vítima) renuncia a qualquer outro pleito a seu favor ou a favor de outrem, tanto em âmbito cível, trabalhista, quanto criminal, além de se abster de veicular ou repassar a terceiros qualquer tipo de informação a respeito do 1º transigente (Klein), inclusive materiais como fotos, vídeos, conversas, gravações, mensagens, dentre outros, sob pena de incorrer em multa por descumprimento do presente pacto", dizem os documentos. A multa estipulada é de R$ 1,6 milhão.

O contrato que teria tido a assinatura falsificada é mais duro, e trazia também uma admissão de que o filho do fundador das Casas Bahia teria causado danos às mulheres. A cláusula 6ª diz que "o 1º transigente (Klein) reconhece e, para que surtam efeitos legais, CONFESSA que sua conduta trouxe lesão significativa à 2ª transigente (suposta vítima), e que por razões já esclarecidas na cláusula anterior não serão externadas". A cláusula anterior diz que "o 1º transigente (Klein) CONFESSA que a 2ª transigente (suposta vítima) exerceu outras funções além das acumuladas acima, porém, em razão do que aqui se pactua, serão mantidas sob sigilo absoluto".

Na Justiça, Klein conseguiu provar através de perícia grafotécnica que a assinatura neste último contrato não é sua, e foi falsificada. O empresário chegou a admitir que os advogados que constam no documento chegaram a prestar serviços a ele em algum momento, mas agiram por conta própria e sem a sua autorização no acordo. Os outros dois acordos são admitidos, mas a defesa do empresário diz que foram firmados sob ameaça de divulgação de fotos íntimas.

"Em março de 2018, durante um período em que o Sr. Saul Klein enfrentava uma severa depressão e ainda se recuperava de um câncer de pele, ele foi procurado pela Sra. M. com uma notícia que muito estranhou: segundo ela, duas modelos que teriam participado dos eventos dele desejavam receber elevada quantia em dinheiro para não exporem a intimidade dele à imprensa - elas, que agora são apontadas como supostas vítimas do novo procedimento de investigação, possuíam fotos íntimas dele e dos eventos, em franca demonstração, por si só, de que nunca houve rigor absoluto dele quanto à proibição e fiscalização de celulares", afirma seu advogado.

"Fragilizado pela depressão e muito preocupado em não se expor negativamente na mídia, o Sr. Saul Klein informou a Sra. M. que, apesar de entender que esse problema deveria ser resolvido por ela, concordaria em firmar "acordos" com as moças para não ter que se preocupar com a imprensa. Isso efetivamente aconteceu, embora o Sr. Saul nunca tenha tratado diretamente com essas mulheres ou com os representantes delas, tendo todos os contatos sido realizados pela Sra. M", prossegue a defesa.

Arquivo pessoal

Klein vê extorsão de agência

A defesa de Klein afirma que o cliente está sendo submetido a um esquema de extorsão com participação tanto das supostas vítimas como dos agenciadores de mulheres. Segundo o empresário, a extorsão teve início em março de 2019, quando percebeu que estava sendo vítima de golpes e gastos excessivos por parte da agência de Marta e das modelos.

"Após uma série de acontecimentos que deixaram claro ao Sr. Saul Klein que estava sendo vítima de golpes por parte da Sra. M. e de algumas de suas modelos - acontecimentos que estão em discussão em procedimentos sigilosos e, por isso, prefere não entrar em detalhes sobre eles - em março de 2019 ele anunciou a ela que não mais contrataria seus serviços", afirma sua defesa.

"Sintomaticamente, logo após essa interrupção, notificações foram encaminhadas ao Sr. Saul Klein deixando claro que Sra. M., seus sócios e subordinadas - muitas delas agora autoproclamadas vítimas na nova investigação e na já arquivada - acostumados a obter dele grandes lucros pecuniários, parecem ter se associado criminosamente para dele obter vantagem financeira indevida, sob pena de forjarem um inexistente vínculo de emprego que teriam com ele e, principalmente, de exporem sua imagem a ridículo, acusando-o de ilícitos que jamais praticou".

A reportagem manteve, ao longo de 2020, contato com supostas vítimas que não estão entre as 14 mulheres que denunciaram Klein ao Ministério Público. A reportagem também teve acesso a relatórios médicos que apontam distúrbios psiquiátricos decorrentes das experiências de mulheres nas propriedades de Saul Klein e doenças sexualmente transmissíveis durante o período em que fizeram parte do suposto esquema.

O UOL Esporte entrou em contato com os advogados que representam judicialmente Marta, Ana Paula e os motoristas no dia 22 de dezembro, e foi avisado de que receberia um retorno caso os clientes quisessem se manifestar, mas não houve novo contato até a publicação da matéria.

Divulgação/Prefeitura de Araraquara

R$ 500 milhões no futebol

Saul Klein foi, nas últimas eleições municipais, candidato a vice-prefeito de São Caetano do Sul, e declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de R$ 62 milhões. O valor chamou a atenção de seu único filho, Phillip Klein, que acionou a Justiça buscando a interdição do pai. Interdição é o termo jurídico para uma ação que busque considerar uma pessoa incapaz de gerir o próprio patrimônio e tomar as decisões sobre a própria vida.

Phillip aponta na ação que, há cerca de 11 anos, o patrimônio estimado do pai era superior a R$ 1,5 bilhão. No cálculo, lista todos os bens e participações em empresas de Saul, e afirma que, caso a declaração dada ao TSE seja verdadeira, isso significaria gastos de R$ 120 milhões por ano.

O argumento do filho do empresário é de que, caso os gastos sigam nesse ritmo, o valor será esgotado em seis meses, nada restando para o seu sustento futuro. Os investimentos do pai no futebol, no São Caetano e na Ferroviária, são apontados como possíveis responsáveis pela situação. A estimativa de Phillip é que tenham sido doados R$ 500 milhões ao São Caetano no decorrer dos anos.

A ação também aponta que imóveis e bens de Saul Klein têm sido vendidos por valores abaixo do mercado, e questiona qual é o destino dado a esses valores. Por fim, pede uma liminar para interditar o pai e impedir que siga mexendo no próprio patrimônio. O pedido foi negado no último dia 5 de dezembro.

O São Caetano não foi encontrado para falar sobre o caso. Já a Ferroviária enviou a seguinte nota à Redação: "Em relação à divulgação de acusações contra o empresário Saul Klein, a Ferroviária Futebol S/A comunica que aguardará pelas manifestações oficiais da Justiça acerca das investigações a serem realizadas pelos órgãos competentes.

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