Rebeca e as pioneiras

Ginasta deixa Tóquio como a maior atleta que o Brasil já teve em uma Olimpíada. Conheça outras precursoras

Demétrio Vecchioli, Denise Mirás e Talyta Vespa Do UOL, em Tóquio e São Paulo Laurence Griffiths/Getty Images

Um intervalo de nove dias foi suficiente para colocar Rebeca Andrade como uma das maiores atletas olímpicas da história do Brasil. Até então sem nenhuma conquista internacional relevante, resultado de uma série de lesões graves que atrapalharam sua carreira, a ginasta sai de Tóquio-2020 com duas medalhas, uma de ouro e outra de prata, e com um lugar no coração da torcida brasileira.

Até Rebeca, nenhuma atleta mulher do Brasil havia subido ao pódio mais de uma vez na mesma edição dos Jogos Olímpicos. E a ginasta fez isso em uma das modalidades mais nobres dos Jogos, e em que nenhuma brasileira havia ganhado medalha antes. E ainda se tornou apenas a quarta mulher do Brasil a conquistar uma medalha de ouro em provas individuais.

Desempenho como o dela, de ouro e prata em uma mesma edição dos Jogos, é inédito no esporte brasileiro. Cesar Cielo, que temia perder seus recordes mundiais nos 50m e nos 100m livre da natação, acabou perdendo o posto de melhor campanha da história brasileira. Em Pequim-2008, ele levou um ouro e um bronze. Agora, a rainha é Rebeca Andrade.

O feito vem em momento em que as mulheres cobram como nunca um papel de protagonismo no esporte brasileiro. E foi exatamente isso que Rebeca conseguiu, como tributo a uma série de pioneiras que vieram antes dela.

Só há Rebeca como maior de todas porque um dia houve Aída dos Santos, a primeira finalista do Brasil, Jaqueline e Sandra, as primeiras campeãs, as seleções femininas de vôlei e basquete, primeiras medalhistas em modalidades coletivas, Ketleyn Quadros, a primeira medalhista em esportes individuais, Maurren Maggi, a primeira campeã individual, e Daiane dos Santos, a primeira campeã mundial de ginástica.

Laurence Griffiths/Getty Images
Miriam Jeske/COB

O ouro

O ouro de Rebeca veio exatamente na primeira vez em que ela disputou uma final internacional no salto. Mais do que isso: na primeira vez em que ela tentou se classificar para uma final dessa prova. Por causa de um extenso histórico de lesões, ela sempre foi poupada de mostrar todo seu talento no aparelho. Agora, inteira de corpo e de cabeça, o potencial virou realidade.

Na final de domingo (1°), Rebeca foi a terceira a se apresentar e começou com o Cheng, em que ginasta faz uma entrada em rodante, um meio-giro na primeira fase de voo e um mortal estendido para frente, com um giro e meio na segunda fase de voo. A nota de dificuldade é 6,0 e a apresentação de Rebeca não foi do mesmo nível das anteriores, nas eliminatórias e na final por equipes. Tirou 15,166, contra 15,400 das eliminatórias.

Para brigar pelo ouro, a brasileira precisaria de uma segunda apresentação de "outro patamar". Foi isso que ela fez. Sabendo que o Yurchenko com duplo twist, do grupo 5,4, apresentado nas eliminatórias, não seria suficiente para o ouro, ela mudou para um Amanar, de 5,8, mas que força bastante o joelho. Com nota de execução 9,2, recebeu 15,000. Média de 15,083.

Jonne Roriz/COB

A prata

A primeira medalha de Rebeca Andrade posou sobre o peito dela na quinta-feira (29) e marcou, também, a primeira medalha olímpica da ginástica artística feminina. Na prova que define as ginastas mais completa do mundo, o individual geral, vale a soma das notas dos quatro aparelhos. A brasileira só não foi melhor que a americana Sunisa Lee. Terminou na segunda colocação, com 57.298 pontos e a medalha de prata.

A brasileira liderou nos primeiros dois quesitos. No salto, sua especialidade, quando teve execução perfeita para receber 15.300 e sair na frente da disputa, mesmo com nota mais baixa que nas qualificatórias. Uma apresentação irretocável nas barras assimétricas, em série ainda mais difícil do que apresentou nas eliminatórias, manteve a brasileira na frente entre as 24 finalistas, com nota de 14.666.

Sua maior adversária, a americana Sunisa Lee, tirou a diferença no terceiro quesito, a trave, Rebeca chegou a figurar na terceira posição, mas um recurso em sua nota na trave — que passou de um duvidoso 13.566 para um ainda criterioso 13.666 — a colocou na vice-liderança antes do último aparelho, o solo.

Nele, Rebeca não chegou a brilhar. Cometeu algumas pequenas falhas, como dois passos após sequências acrobáticas que custaram alguns décimos. Mas a nota de 13.666 foi o suficiente para o resultado inédito.

Arquivo pessoal
Rebeca e a mãe, Rosa

Quem é Rebeca Andrade

A atleta de 22 anos é natural de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Mas quem é Rebeca Andrade, duas vezes medalhista nas mesmas Olimpíadas? É uma menina-mulher potente, intensa, dedicada, que aprendeu e reaprendeu, na prática, o significado da palavra superação.

Vou além: Rebeca Andrade é a personificação da exaltação feminina nos Jogos de Tóquio. Não só pela própria performance, inquestionável, mas pelas dificuldades que a levaram até o pódio duas vezes. Dificuldades também de uma mulher que, como tantas brasileiras, se desdobraram em mil para criar, sozinha, sete filhos: Rosa, a mãe de Rebeca.

Empregada doméstica, a mãe nunca desencorajou a filha a praticar o esporte.

"Muitos me criticaram na época porque, logo aos nove anos, ela foi morar fora, foi se dedicar aos treinos", disse a mãe, em entrevista ao UOL.

Diziam 'você é doida de deixar sua filha ir embora'. Mas eu tive a sabedoria e a mente aberta para deixá-la seguir seus sonhos. Eu deixei que ela voasse atrás de um objetivo. Deixando também claro que se não desse certo, as portas de casa sempre estariam abertas para ela. Hoje eu vejo que agi certo, por ter ouvido o meu coração."

Rosa contou com o apoio dos filhos mais velhos, que se revezavam para acompanhar a talentosa irmã nos treinos a pé ou de bicicleta quando o dinheiro não dava nem para a passagem de ônibus. Foi a mãe, ainda, quem cuidou da menina nas vezes em que as lesões no joelho direito a fizeram pensar em desistir. Cuidou do físico, daquele jeito que só mãe sabe, e do lado emocional —cá entre nós? Mais ainda, daquele jeito que só mãe sabe.

Importante frisar que a história de superação de Rebeca Andrade não romantiza o investimento do Brasil no esporte. Pelo contrário. Ela é campeã apesar do pouco apoio que atletas brasileiros têm, do governo e da sociedade civil, para se dedicarem exclusivamente às modalidades que praticam. Não romantiza, tampouco, o abandono paternal: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 12 milhões de mães chefiam lares sozinhas, sem o apoio dos pais, como Rosa. Dessas, mais de 57% vivem abaixo da linha da pobreza.

A realidade para as tantas Rebecas pelo Brasil é dolorosa.

As pioneiras

Paul Gilham/Getty Images

Uma de tantas primeiras vezes

Rebeca protagoniza a primeira medalha olímpica da ginástica brasileira. Como ela, outras atletas colocaram o nome na história do pioneirismo no esporte do país. Uma delas foi Ketleyn Quadros que, em Pequim-2008, conquistou pela primeira vez uma medalha olímpica em provas individuais femininas. O feito veio quando Ketleyn derrotou a australiana Maria Pekli e conquistou o bronze no judô, a primeira medalha do país nas Olimpíadas de Pequim. Em Tóquio-2020, Ketleyn Quadros voltou aos Jogos, 12 anos de decepções depois. Não chegou ao pódio, mas saiu de cabeça erguida. Hoje com 33 anos, ela mostrou garra e só parou na repescagem

Folhapress

Maurren Maggi, outro feito pioneiro

Logo depois de Ketleyn, veio Maurren Maggi. Oito anos depois de ter saído dos Jogos de Sydney-2000 machucada e cinco após o pesadelo de 2003, quando uma pomada dermatológica a fez cair no antidoping, a brasileira exorcizou seus demônios na China. Com um salto de 7,04 m logo em sua primeira tentativa, conquistou a primeira medalha de ouro individual feminina do Brasil. Antes de 2008, nenhuma atleta do país havia superado o quarto lugar. A primeira a alcançar este resultado foi Aída dos Santos no salto em altura, em Tóquio-1964. Quarenta anos depois, Natália Falavigna ocupou este posto na categoria acima de 67 kg do taekwondo.

Ricardo Borges/UOL

Dona Aída e o desdém

Aída dos Santos chegou ao seu quarto lugar no salto em altura, também em Tóquio, mas nas Olimpíadas de 1964. Aída chegou nesse patamar sozinha. O desdém brasileiro em relação à atleta foi tanto que até hoje, 57 anos depois, Aída ainda tem mágoas.

"Fui para as Olimpíadas sem uniforme oficial. Eu tinha uma saia cinza de um torneio Ibero-americano e uma blusa que, por sorte, eram parecidas com a roupa da rapaziada no desfile de abertura das Olimpíadas."

Abandonada no alojamento das atletas, ela encontrou uma maneira de enfrentar a solidão. "Eu chorava e andava de bicicleta. Havia bicicletas perto do quarto e eu andava para todo lado, para o refeitório, fazia gestos para me comunicar com os voluntários, preenchi documentos gesticulando para as japonesas da organização e, assim, fui sobrevivendo sem apoio ou visita de algum técnico ou dirigente brasileiro."

No dia de treino para a disputa do salto em altura, Aída relembra: "Eu sabia quem era a canadense que disputaria a mesma prova que eu, então a segui. Andei disfarçadamente atrás dela, porque não tive orientação sequer sobre como chegar aos lugares lá dentro. Eu não tinha sapato especial para a prova. Não tinha orientação, peguei o colchão e treinei sozinha, do meu jeito."

No dia da competição, Aída se dirigiu ao estádio olímpico sozinha e sem qualquer orientação. "Eu estava só. As atletas estavam com seus técnicos e intérpretes. Só havia mais uma negra da equipe americana. E eu ali. Começaram a chamar uma a uma e, a cada chamada, uma atleta se levantava e apertava um botão. Fiquei atenta e fiz o mesmo na minha vez."

A dolorosa epopeia tornou Aída uma vencedora. Ela abriu portas que antes estavam trancadas.

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Ormuzd Alves/Folhapress
Adriana, Mônica, Jaqueline e Sandra, as pioneiras do vôlei de praia

Ouro e prata nas areias

Antes de Rebeca, de Ketleyn e de Maurren, outras mulheres aproveitaram essas portas abertas por Aída. O problema é que demoraram 32 anos para fazer. O nome dessas pioneiras: Jaqueline Silva, Sandra Pires, Mônica Rodrigues e Adriana Samuel. Elas foram as primeiras mulheres do Brasil a subir em um pódio olímpico, no dia 27 de julho de 1996.

Aconteceu no vôlei de praia, que estava estreando naquela edição olímpica. E, sim, foi uma final toda brasileira. Jaqueline e Sandra de um lado, Mônica e Adriana do outro. O esporte, naquela época, era novo no Brasil e as vencedoras, Jaqueline e Sandra, tinham ido para os EUA para se preparar.

O preço a pagar? "Vender carro, deixar o noivo e a família no Brasil. Foram muitas decisões para uma menina de 20 anos. Não foi fácil, mas eu queria aproveitar a oportunidade, tinha que arriscar. Tivemos uma dedicação total. Não é só treinar e jogar, são várias situações que você vai passando, que vão te moldando", contou Sandra no ano passado à CBV, quando o título completou 24 anos.

As conquistas das quadras

Ormuzd Alves/Folhapress

O bronze do vôlei

E como o solo dos EUA parece ter sido feito para pioneirismo brasileiro, aquela edição olímpica teve mais duas "primeiras": no espaço de dois dias, o Brasil viu seus dois primeiros pódios em esportes coletivos. No vôlei de quadra, jogadoras que vinham da decepção de Barcelona-1992, como Ida, Ana Moser, Fernanda Venturini e Márcia Fu, eram herdeiras da geração que transitou entre o amadorismo e o profissionalismo e chegou ao bronze.

Arquivo/Folhapress

E a prata do basquete

Um dia depois, foi a vez da seleção de basquete. Ouro no Mundial de Sydney-1994, chegaram aos Jogos de Atlanta-1996 com status de favoritas. Paula era a maestrina e o pulmão do time, e Hortência, que havia sido mãe de João Victor cinco meses antes, era a matadora. Não havia como vencer os EUA em casa e no esporte que inventaram, mas a prata ainda é o maior resultado do basquete brasileiro em Olimpíadas ? entre homens e mulheres.

Mustafa Ozer/Getty Images

Mayra e Fofão, as recordistas

Para completar, é preciso lembrar também das recordistas. A levantadora Fofão é o ícone das primeiras campeãs olímpicas em esportes coletivos: a seleção de vôlei foi a responsável por isso em Pequim-2008, na redenção do time de Mari e Fabiana que tinha perdido quatro anos antes para a Rússia nas semifinais.

E ainda tem Mayra Aguiar: o fenômeno do judô disputou, em Tóquio, sua quarta Olimpíada. E subiu ao pódio três vezes. Nenhuma mulher tinha subido ao pódio em três Jogos seguidos — muito menos em provas individuais.

Júlio César Guimarães/COB Júlio César Guimarães/COB

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