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A injúria racial que parou um jogo, eliminou um time e foi parar na Justiça

Vagner Figueiredo Lima foi vítima de injúria racial - Arquivo Pessoal
Vagner Figueiredo Lima foi vítima de injúria racial Imagem: Arquivo Pessoal

Aurelio Nunes

Colaboração para o UOL, em Salvador

05/08/2022 04h00

Em um ano no qual a Copa Libertadores tem sido marcada por recorrentes episódios de racismo - eles também aconteceram em gramados brasileiros - o futebol profissional parece ainda pouco disposto a aplicar punições duras que coíbam a prática criminosa. Nos gramados amadores, entretanto, uma injúria racial em março deste ano paralisou uma partida, eliminou uma equipe do torneio que disputava e foi parar na Justiça.

O árbitro Vagner Albuquerque de Lima, 57, acionou na Justiça Cláudio Aparecido Sampaio, 44, dirigente de uma equipe de futebol amadora de futebol Society chamada Ressacas FC por injúria racial. Este é o lance mais recente de um jogo disputado no último dia 13 de março e que foi paralisado aos 8min do primeiro tempo depois que Sampaio teria xingado Lima de "macaco cego", entre outras ofensas.

A Playball, organizadora do evento, adotou a paralisação da partida e tomou a decisão de eliminar o Ressacas da competição. Para o árbitro, entretanto, aquele jogo ainda não acabou: "Ele (Sampaio) me xingou de 'macaco cego' e continuou me xingando mesmo depois que foram tomar satisfação. Agora ele vai ter que lidar com as consequências", argumenta.

O caso foi registrado em um boletim de ocorrência no dia 18 de março na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi). No dia 6 de julho, Lima ingressou com uma ação indenizatória por danos morais contra Sampaio no valor de R$ 25 mil. "O que mais me entristece nisso tudo é que o homem que me chamou de macaco também é negro, como eu", pontuou.

Vagner Lima é guarda civil metropolitano aposentado, mas na hora recusou as sugestões dos colegas de dar voz de prisão a Sampaio por temer pela segurança de seu agressor. Ele alega que as ofensas que sofreu despertaram uma indignação coletiva na Playball, a ponto de paralisar outros jogos que eram realizados simultaneamente. "A confusão foi geral, ficou todo mundo revoltado. Os jogadores do banco do adversário, até um atleta da quadra ao lado foi tirar satisfação com esse dirigente, que teve de sair protegido pela segurança da Playball pra não ser linchado", relata.

A versão do árbitro é confirmada por outras quatro pessoas: o colega de arbitragem Cristiano Camargo, o gerente de eventos da Playball, Douglas Lima, um jogador da equipe do Sítio do Morro e um representante da Federação Paulista de Soccer Society.

O episódio ocorreu na rodada inaugural da Liga F7, em partida disputada na Playball da Pompeia, zona oeste de São Paulo. O Ressacas, do Jardim Elisa Maria, perdia por 1 a 0 quando a arbitragem marcou escanteio em um lance que a bola teria desviado na mão de um atleta da equipe de Sítio do Morro, do bairro do Limão. A torcida protestou, pedindo pênalti, mas Sampaio roubou a cena por ter extrapolado.

"A mão do jogador estava colada ao corpo, e pela regra foi uma atitude de defesa. Mas mesmo que fosse pênalti não tinha justificativa pra ofender o Vagner daquela maneira", declara Cristiano Camargo, 50, que dividiu com Lima a arbitragem da partida. Segundo ele, o colega teria sido xingado por Sampaio de "macaco cego" e de "maldito".

"Quando o Vagner encerrou a partida, todo mundo bateu palmas. E o cara (Sampaio) continuava ofendendo, descontrolado, mandando a gente calar a boca, me mandou tomar naquele lugar. Perdeu a compostura e quando ele viu o que tinha feito começou a se esconder e foi embora", conta. "Todo mundo foi solidário ao Vagner, até os jogadores do Ressacas foram pedir desculpas pra ele".

Segundo um atleta do Sitio do Morro que preferiu para não ser identificado, a reação do time foi imediata. "Eu não sou negro, mas a maioria dos jogadores do nosso time é. Eu estava em campo na hora e disse ao juiz que não íamos aceitar continuar a jogar aquela partida daquele jeito", declarou. Ele disse ainda que depois que Sampaio foi retirado da Playball, alguns atletas do Ressacas tentaram retomar o jogo alegando que se tratava de apenas um torcedor.

Mas a constatação de que o nome do acusado figurava como dirigente na súmula selou a sorte do time na partida e na competição, que ainda não acabou. Faltando duas rodadas para o final da fase classificatória, o Sitio do Morro lidera com 39 pontos. Já o Ressacas aparece como lanterna, com nenhum ponto ganho, uma vez que todas as suas partidas foram computadas como derrotas por WO pelo placar de 2 a 0. Em comunicado publicado nas redes sociais em 18 de março, o Sitio do Morro se manifestou sobre a decisão. "Apoiamos a decisão da @playbaloficial e que isso sirva de lição ao infrator do crime. O Sítio do Morro diz não ao racismo".


Segundo e gerente de eventos da Playball, Douglas Lima, não havia outra medida a ser tomada. "Eu estava na sala da administração e fui chamado pelo rádio para contornar um princípio de confusão que estava ocorrendo nesse jogo. Não vi a agressão inicial, mas vi que esse dirigente estava completamento descontrolado, ofendendo todo mundo. Já tivemos vários tipos de problemas disciplinares, mas nunca tinha presenciado uma ofensa desse tipo".

Segundo o gerente da Playball, a gravidade da ofensa e o histórico do Ressacas pesaram para a decisão de eliminar o time da competição. "Eles já tinham sido expulsos da Federação Paulista por indisciplina", relata. A informação foi confirmada pelo departamento técnico da Federação Paulista de Soccer Society (FPSS),

"Sim, tivemos problemas com esta equipe, por divergências com a organização e principalmente com a arbitragem", relata um dirigente da entidade, que preferiu não se identificar. Desde 2019, o Ressacas está impedido de participar das competições organizadas pela FPSS. Questionado pela reportagem se a FSSP foi notificada sobre o episódio na Playball, o dirigente respondeu. "Eu sei de tudo, eu estava presente. Foi ato de racismo com um oficial de arbitragem".

A reportagem tentou contato com Claudio Sampaio, mas ele não conseguiu localizá-lo. A diretoria do Ressacas se recusou a repassar os contatos de seu membro. Foi sugerido então que os dirigentes do time anotassem endereços de contato fornecidos pela reportagem para que Claudio pudesse, quando desejasse, contar sua versão. A sugestão também foi rejeitada.

Questionada sobre o racismo, a diretoria do Ressacas desconversou. "Meu amigo, somos um time de preto, da favela, somos negros aqui não existe isso! Foi coisa de jogo, infelizmente nosso país está assim! Ali não houve racismo", disse um dirigente da equipe que se identificou apenas com o prenome Claudinei.

A reportagem questionou porque o jogo foi paralisado, o Ressacas foi eliminado da competição e o árbitro Vagner Lima está processando Cláudio Sampaio. "Mi mi mi", ironizou. "Em time de favela não existe isso. Foi coisa de jogo. Somos negros com orgulho. Sai dessa garoa. Sem mais conversa", finalizou.

Vagner Lima diz que não descansa 'até que a justiça seja feita'. "Espero que ele tenha um transtorno pra se defender e que ele tenha um prejuízo financeiro que ele mesmo buscou. Espero que ele aprenda que pode torcer e pode até xingar, mas não pode me ofender ninguém como ele me ofendeu".