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Paulista - 2020

Dérbi no hospital: Futebol "cedo demais" preocupa quem vê covid-19 de perto

Ambulância chega ao Hospital das Clínicas por volta das 21h50 de ontem (22), enquanto Corinthians e Palmeiras jogavam dérbi - Arthur Sandes/UOL
Ambulância chega ao Hospital das Clínicas por volta das 21h50 de ontem (22), enquanto Corinthians e Palmeiras jogavam dérbi Imagem: Arthur Sandes/UOL

Arthur Sandes

Do UOL, em São Paulo

23/07/2020 04h00

Quando Gil cabeceou e fez o único gol do Corinthians 1 x 0 Palmeiras de ontem (22), nada se ouviu a 23 quilômetros dali, nas cercanias do Instituto Central do Hospital das Clínicas, uma referência no combate à covid-19 em São Paulo. Para quem vê a doença de perto, é cedo demais para retomar o futebol.

O movimento era pequeno, resumido a enfermeiros saindo para pegar o jantar com entregadores de aplicativo. Mas o hospital seguia atarefado: na hora e meia em que o dérbi foi jogado na Arena, seis ambulâncias chegaram ao setor do HC destinado ao tratamento de pacientes com covid-19.

No ponto de táxi em frente ao Instituto Central, Denis Soares, 62 anos, aguardava algum passageiro de dentro do carro. Palmeirense, rádio ligado no jogo e apreensão com o retorno do Campeonato Paulista.

Denis Soares - Arthur Sandes/UOL - Arthur Sandes/UOL
Denis Soares, taxista, estava com saudade do Palmeiras mas não a ponto de aprovar o retorno
Imagem: Arthur Sandes/UOL

"É muito cedo para voltar, muito cedo mesmo. Passa uma imagem ruim, porque o povo assiste e quer se aglomerar também", preocupa-se Denis, que perdeu três amigos para a doença. Do táxi, ele vê diariamente o estrago causado pela pandemia. "Ontem mesmo levei uma senhora que tinha tido alta, estava toda feliz. Mas o clima é sempre ruim, pesado, o pessoal chorando", lamenta.

Denis não é o único a se indignar. Todas as pessoas que o UOL ouviu para esta matéria mostraram algum receio - muito ou pouco - com a volta do futebol.

O infectologista Evaldo Stanislau, médico do Hospital das Clínicas, reforça como o Paulistão se torna um mau exemplo. Mesmo que o protocolo feito pela Federação Paulista de Futebol (FPF) funcione e os jogos não custem a saúde de nenhum profissional envolvido, a bola rolando vende uma falsa normalidade.

"Nós sabemos bem da importância cultural do futebol no Brasil, e a volta dos jogos pode representar algum alívio para as pessoas. Mas o País tem média de mais de mil mortes por dia. Até em respeito a essa situação, ao luto de quem perdeu alguém, nosso foco deveria ser totalmente em atividades essenciais", opina o infectologista.

"Ao voltar neste momento, o futebol passa uma mensagem de normalidade quando não estamos nem sequer no chamado 'novo normal'. Não podemos nos acostumar à covid-19, senão baixamos a guarda", alerta.

Ontem, horas antes do Corinthians x Palmeiras, o estado de São Paulo registrou a segunda maior alta de casos em 24 horas, considerando a pandemia inteira. Foram 16.777 novos diagnósticos e 391 novas mortes, e o total de vidas perdidas já passa das 20,5 mil.

Indignação e seis dias internado

No Hospital das Clínicas, Marlene da Silva, 55 anos, terminava o expediente na limpeza enquanto Corinthians e Palmeiras aqueciam em Itaquera - o mesmo bairro em que ela mora. Diz não acompanhar nem entender futebol direito, mas entende menos como decidiram retomar os jogos.

"Por que volta o futebol, mas não abre o resto das coisas? Não deveria ter [jogo], porque é um exemplo ruim. Aqui no hospital se vê logo pelo movimento como essa epidemia ainda não acabou", critica.

Guilherme Andrade - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Guilherme Andrade passou seis dias internado com covid-19 antes de se recuperar
Imagem: Arquivo pessoal

Guilherme Andrade, 26 anos, conheceu a covid-19 da pior maneira. Passou seis dias internado e até recebeu oxigênio antes de se recuperar. Corintiano e também morador de Itaquera, ficou incomunicável e chegou a pensar no pior.

"Vi pessoas morrendo no mesmo lugar que fiquei, na enfermaria. Era pesado. Fui ao hospital bem, só com febre, pensei que voltaria para casa depois de uma tomografia, mas do nada abriram uma porta de vidro e me disseram 'você vai internar'", conta.

Atualmente, 13.471 pessoas estão internadas com covid-19 no estado de São Paulo, passando mais ou menos pelo que Guilherme passou. Priorizar o futebol agora, para ele, é desumano. "Sou totalmente contra a volta do futebol. Estes procedimentos não foram feitos como na Europa, por exemplo, onde esperaram os casos baixar para retornar. Aqui está sendo na bagunça", afirma.

O Paulistão contabiliza pelo menos seis casos ativos de covid-19 entre os jogadores: três no Santo André e um no Santos (estes não revelados), além de Cantillo (Corinthians) e Gustavo Gómez (Palmeiras). Ontem foram disputados quatro partidas, e hoje a 11ª rodada será completada com outros quatro - nenhum deles pode ser no interior do estado, onde a covid-19 se espalha cada vez mais.